quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
Só garotos
Saiu no Brasil o livro "Só garotos", que foi o vencedor do National Book Awards a dois meses atrás. A autora Patti Smith ficou feliz com a visibilidade que sua obra alcançou com a premiação e eclarou que "assim muito mais gente vai conhecer o verdadeiro Robert".
O "Robert" a que ela se refere é o talentosíssimo fotógrafo americano Robert Mapplethorp, morto em 1989, cuja obra é mais conhecida pelo seu aspecto polêmico do que pelo todo que abracou o seu olhar. Patti prometeu à ele que escreveria este livro pouco antes ele morrer vitimado pela AIDS, e cumpriu em grande estilo nestes 20 anos de dedicação que a obra lhe tomou e fez este "romance de formação" de dois artistas em tempos mais, digamos, românticos.
Patti era companhia frequente de Mapplethorpe (as fotos dela neste post são todas de autoria dele) e acompanhou os movimentos de sua vida num período onde as coisas eram outras na América: ser artista era sobreviver, antes e mais nada, num mundo que entrava no movimento punk e poetas eram seres marginais. Patti e Robert foram reais sobreviventes e entraram para a história da cultura, cada um do seu jeito: ela gravou um disco seminal intitulado Horses, ainda paradigmático para quem quiser saber o que era ser rimbaudiano na década de 70, e ele virou ícone da fotografia que, apesar de ser conhecido pelas imagens homoeróticas ou sado-masoquistas, foi muito além disto, criando uma estética particular.
Bem, só me resta deixar um trecho do livro para a leitura que relata o encontro da autora, antes da fama, com o poeta beatnik Allen Ginsberg, em uma cafeteria de Nova York, em 1969.
Eu estava sempre faminta. Meu metabolismo era muito rápido. Robert conseguia ficar sem comer muito mais tempo do que eu. Se estávamos sem dinheiro, a gente simplesmente não comia. Robert ainda conseguia funcionar, embora ficasse um pouco agitado, mas eu parecia que ia desmaiar. Uma tarde chuvosa fiquei com desejo de um daqueles sanduíches de queijo e alface. Procurei em nossas coisas e achei exatamente 55 centavos, coloquei as moedas em minha capa de chuva cinza, com meu chapéu de Maiakóvski, e fui ao Automat.
Peguei minha bandeja e depositei as moedas, mas o vidro não abriu. Tentei de novo sem sorte e então reparei que o preço havia subido para 65 centavos. Estava desapontada, para dizer o mínimo, quando ouvi uma voz dizer: "Posso ajudar?".
Virei-me e ali estava Allen Ginsberg. Nunca havíamos nos encontrado antes, mas sem dúvida era um dos grandes poetas e ativistas do país. Olhei para aqueles intensos olhos castanhos envolvidos por uma barba escura e cacheada e simplesmente assenti. Allen acrescentou os dez centavos que faltavam e ainda me pagou um café. Sem palavras, acompanhei-o até a mesa, e então ataquei o sanduíche.
Allen se apresentou. Ele falava sobre Walt Whitman e comentei que havia sido criada perto de Camden, onde Whitman fora enterrado, quando ele se inclinou para mim e olhou com mais atenção. "Você é menina?", perguntou.
"Sou", falei. "Algum problema?"
Ele só deu risada. "Desculpe. Achei que você fosse um menino bonito."
Então entendi tudo.
"Bem, isso quer dizer que devo devolver o sanduíche?"
"Não, aproveite. O engano foi meu."
Ele me contou que estava escrevendo uma longa elegia para Jack Kerouac, que havia morrido recentemente. "Três dias depois do aniversário de Rimbaud", falei. Apertei a mão dele e nos despedimos.
Algum tempo depois, Allen se tornou meu bom amigo e professor. Vez por outra lembramos de como foi nosso primeiro encontro, e ele uma vez me perguntou como eu descreveria quando nos conhecemos. "Diria que você me deu de comer quando eu estava com fome", respondi. E de fato foi assim.
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Puts! Muito bom! Vou anotar tudo aqui! Sem contar a genialidade generosa do Carlo Marx! Lindo, lindo: "diria que você me deu de comer quando eu estava com fome", que que eu digo disso?
ResponderExcluirEu digo que comprar um menino bonito com dez centavos é uma pechincha e uma violência.Shame on you, Allen Ginsberg.
ResponderExcluirOi Enaldo, cê precisa dar uma circulada na night para ver o que rola de graça.
ResponderExcluirNão duvido,rs... O fato de ouvir relatos escolares constantes de prostituição infantil e violência doméstica (incestos à rodo) me deixa indignado com todos estes estupros de vulneráveis. Em "Insustentável Leveza do Ser" Milan Kundera afirmou algo mais ou menos assim: a gente vê se uma pessoa é boa no modo como ela lida com aqueles que não tem saída. Garotos menores não tem consciência plena do que estão fazendo (lógico que não são santos),mas eu entendi a do texto, gostei à béça, não estou aqui censurando e nem perorando. Vou comprar o livro. Valeu o comentário.
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