domingo, 12 de julho de 2009



Sempre tive com alguns filmes uma relação de intimidade que faz com que eu os trate como amigos ou parentes, consciente que sou dos segredos íntimos da minha alma que foram desvendados por eles. Como pretensão e água benta cada um pega o que pode, tenho comigo que deveria escrever algo sobre isto, ou sobre eles, e que esta minha escrita pudesse imputar, de alguma forma, um valor ainda não descoberto a estas obras tão próximas, como um agradecimento. Infelizmente a tarefa é inglória, e descobri isto faz tempo. O cinema contribuiu para que minha passagem por esta vida fosse mais (muito mais...) leve e eu continuo na dívida com a sétima arte, não passando de um resenhista comum. Mas insisto em achar que ao cruzar com filmes como “Crepúsculo dos Deuses”, “Festa de Babette”, “Fanny e Alexander”, “O Martírio de Joanna D’Arc”,entre muitos outros, me fazem insistir nesta tentativa, quem sabe? Pois é...Um dos meus filmes prediletos, e que constam da “tal lista pessoal”, acaba de sair em DVD no Brasil, depois de muitos (mas muitos mesmo...) anos de jejum impostos à minha pessoa e ao grande público, já que desapareceu a décadas das salas de projeção. Trata-se do magnífico Johnny vai à Guerra.
Realizado em 1971, esta produção é o primeiro e único filme dirigido pelo escritor e roteirista Dalton Trumbo, uma das mais cruéis vítimas do maccarthismo que assolou Hollywood durante a caça às bruxas nos anos 50, e é um contundente documento contra a guerra do Vietnã que, na década de seu lançamento, estava no seu auge e ceifava as vidas da juventude americana com uma foice esfomeada. Talvez a obra que o diretor perpetrou não seja um filme, mas um monumento erigido contra as guerras, todas elas, do passado, do presente e do futuro.
Filmado em preto e branco, alternado com cenas coloridas, a história deste filme tem como personagem o soldado Johnny (Timothy Bottoms) que é vítima de uma mina terrestre nos campos de batalha da Primeira Grande Guerra. Este acidente lhe amputa as duas pernas, os dois braços e parte de seu rosto, eliminando assim a maioria de seus órgãos sensoriais, reduzindo o soldado a um tronco inerte, - um monte de carne mantido vivo artificialmente, digamos assim - que fica deitado numa maca de um hospital, com uma proteção sobre o rosto deformado, e serve de estudos para a equipe médica. Porém, constataremos com um certo horror, que o monte de carne pensa...
As tomadas correspondentes à realidade de Johnny, filmadas num preto e branco radical, fazem um contraponto às cenas coloridas que, na verdade, não sabemos se são sonhos, lembranças, delírios ou tudo isto junto. Este estado entre vida e torpor vai se impondo durante a passagem do filme e nossa compaixão pelo homem-tronco a que o nosso herói (sim, gente, Johnny é um herói...) foi reduzido cresce a ponto de nos sentirmos no lugar dele. Esta troca de papéis, espectador e personagem, é uma das molas mestras do cinema, mas a ausência de um rosto naquele sujeito, jogado ali naquela cama, contribui muito para que a interação se conclua com sucesso. É difícil não vivenciar esta troca. E Timothy Bottoms consegue desempenhar desta forma aquele que pode ser considerado o grande papel de sua carreira.
Dalton Trumbo soube como dirigir este desafio, mesmo que tenha pensado em dar a direção deste libelo anti-belicoso a nada mais nada menos que Luis Buñuel, o mestre espanhol. A alternância dos momentos de realidade e dos momentos de irrealidade do soldado, nos surpreendem pelo alto grau de afetividade que Trumbo imprimiu à sua direção. A rotina da vida de Johnny – nada que não seja a nossa corriqueira vida, a qual damos valor sempre que corremos o risco de a perder – fazem contrapeso com as cenas delirantes, como a da aparição de um Cristo (Donald Sutherland, em cores hippies) que joga pôquer pacientemente com os jovens soldados que estão prestes a morrer no campo de batalha. Deste jogo equilibrado, que possui um grau muito bem dosado de sentimentalismo, saem as emoções copiosas desta obra que mistura poesia com tratamento de choque.
Há de se louvar a Aurora, que premia o público com esta deslumbrante e emocionante obra cinematográfica, que foi vencedora do Prêmio Especial do Júri e do Prêmio de Crítica no Festival de Cannes, em 1971, colocando-a no mercado em DVD ( 106 minutos, com alguns extras. R$ 30) e que, nas palavras de Roger Ebert, jornalista do Chicago Sun Times, “não é só um filme anti-guerra, mas um filme pró-vida”. Uma obra de arte, indiscutivelmente.

Este texto foi escrito em 25/06/2006, para o site cultural
www.poppycorn.com.br

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