domingo, 12 de julho de 2009

Pérolas para os porcos, diamantes para os cães



David Bowie é um dos ícones do pop no século passado. Hoje, vivendo de rendas que ultrapassam o mundo da música – como proprietário de um banco, por exemplo – o chamado exaustivamente de “Camaleão” ainda empresta seu charme a muita coisa. Mas foi lá nos anos 70 que sua estrela mais brilhou. Trazido por uma possível nave espacial que aterrizou em Key West, Londres, este camarada iniciou uma carreira que juntou em torno de si o “crème de la crème” da garotada do mundo inteiro, que ansiava por um ídolo assim, vamos dizer, “diferente”. Com visual andrógino e figurinos exóticos, criou a era “glitter” e espantou muita gente que ouvia rock progressivo. Seu disco “The Rise and Fall from Ziggy Stardust and the Spiders from Mars” figura, até hoje, como uma obra prima do rock e fez a cabeça de muita gente com um “hit” quase profético que tinha o refrão: “Freak out on a moonage daydream, oh yeah...”. Era uma grande curtição... A este seguiu-se “Alladin Sane” - o disco do raio na testa - que Bowie plugou na tomada, mas não ligou a voltagem, preparando todos para o choque que viria a seguir. “Pin Ups” seguiu-se, mas era um disco estrategicamente não-conclusivo. Recheado de versões de bandas que DB ouvia em sua Londres adolescente, era, na verdade, a introdução para o gigantesco “Diamond Dogs”, este sim “o” disco.
Depois de um “tour” por todas as drogas disponíveis que a grana poderia comprar, David Bowie mergulhou, em 1974, no projeto de musicar o romance pessimista/futurista de George Orwell, “1984”. Para ele 10 anos separavam o mundo de uma catástrofe anunciada. A família do autor do livro barrou a aventura e Bowie teve que fazer adaptações para apresentar aos seus fãs o trabalho que já estava a caminho. Manteve algumas composições que aludem claramente a Orwell, mas criou outras que reproduziam o “clima” da obra sem serem exatamente explícitas. E assim chegou às lojas “Diamond Dogs”...
Era assustador...E sedutor...Os fãs de Bowie entenderam tudo: o processo de auto-destruição no qual o artista estava enfiado até o pescoço estava ali, claramente explicitado.
Com uma capa criada pelo desenhista Guy Peelaert, a figura do “Camaleão” surgia nos encarando com o olhar frio da retina paralisada do seu olho (que assim ficou desde um soco que levou na infância) e, em pose lânguida no chão, se mostrava metade gente metade cão. Um muro com cartazes que anunciava um circo de “estranhas criaturas vivas” fazia um segundo plano e a cidade arruinada finalizava a panorâmica. Dentro, um encarte nos dava uma visão apocalíptica de prédios envoltos numa fumaça pós ataque nuclear e confirmavam a desesperança.
Como um rasgo sonoro, a primeira faixa dava o tom. Com voz robotizada e lúgubre, entre uivos de cães, Bowie descreve um cenário de desespero nos mostrando matilhas e mutações que sobrevivem de rapina entre as ruínas da civilização. Com uma citação incidental de “Bewitched, Bothered and Bewildered”, termina esta introdução dizendo: “...anyday now, the year of the Diamond Dogs...This isn’t rock and roll, this is genocide...”
O que se segue é inexplicável.
Faixa por faixa nos defrontamos com um artista no auge de sua carreira, no auge do seu estilo, confirmando a que veio. Faixa por faixa ele nos envolve em rocks à la Rolling Stones numa citação clara de sua admiração por Jagger; em baladas românticas, de onde brota o sangue da paixão, anuncia que somos os mortos; afirma que enlouquecemos nossos pais que não conseguem saber se somos meninos ou meninas; nos chama a todos de rebeldes; se faz de Big Brother e termina com uma dança hipnótica, talvez a melhor coisa para se dançar tribalmente que já foi escrita por décadas. E, quando acaba, sobramos nós, extasiados.
Depois do sucesso Bowie desapareceu. Recolheu-se. Surgia esporadicamente porém sem portar sua figura andrógina. Retirou-se para Berlin e, com o gênio Brian Eno, criou os pilares da “ambient music” que nascia ali. E sua carreira foi outra. Das cinzas de sua auto-imolação, surgiu outro artista, tão sério como sempre foi, mas antenado em outra sintonia não menos revolucionária que aquela que deixava para trás.
Foi relançado recentemente no Brasil, pela Virgin, este “Diamond Dogs” visceral. Após 30 anos ressurge, sem ter sequer desaparecido, para se confirmar como obra fundamental na discoteca de todos que amam música inteligente.
Saudemo-lo: Heil to the Starman...Heil to the Diamond Dogs…
Este texto foi escrito em 28/10/2004 no site www.poppycorn.com.br

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