domingo, 12 de julho de 2009

Leia o filme e veja o livro


Eu me recordo de uma charge feita por Henfil, onde um de seus conhecidos personagens, o Bode Orelana, estava numa pilha de lixo devorando uma fita de vídeo e dizia: “O livro era melhor.” Desta forma o nosso saudoso chargista sintetizou quase tudo que se pode escrever sobre a relação da literatura com o cinema.
Antes que a voz clamante daqueles que crêem que o cinema “filma livros” se levante, eu esclareço: faz-se filmes baseados em livros. Nada mais. E é fundamentada nesta relação de autonomia que as duas linguagens sobrevivem uma à outra, mas se tocando em muitos pontos.
Historicamente o cinema se iniciou tendo como clara referência a arte do teatro. Esquece-se, às vezes, que esta expressão fundamentava-se na literatura, portanto não seria estranho transportarmos o mesmo raciocínio para a sétima arte, afirmando sua parceria com o texto escrito. E se há valores a serem destacados, podemos já de início dizer quais as semelhanças que fazem do cinema e da literatura artes idênticas, como seus objetivos de fornecer elementos indispensáveis para o imaginário humano, para a eternização da fantasia, para a multiplicação da inteligência e para as reflexões sobre nossa efêmera existência. E se existem pontos de divergência, ressaltemos um bem óbvio: o universo da literatura é o da palavra e o do cinema é o da imagem.
Antes que isto soe muito reducionista, desenvolvamos então alguns pensamentos que possam esclarecer nossa afirmação sobre estes diferentes universos. Iniciemos pelo texto literário e sua construção narrativa que conta com a parceria imprescindível do leitor. Por mais claro que seja o estilo do autor de um livro, ele sabe que as características intrínsecas do texto literário, como originalidades, subjetividades, entrelinhas, etc., encontrarão na mente das pessoas seu nicho imagético. Já o cinema inverte, de certo modo, este caminho, trazendo através das imagens, um complemento “textual” no espectador. Afirma-se que o cinema roubou da literatura parte da tarefa de contar histórias, fato que realmente podemos creditar parcialmente, já que o cinema, a certa altura, rompeu também com este tipo de responsabilidade, ao se mostrar um bom parceiro para as revoluções da arte e seus desmembramentos. Foi assim quando se enveredou pelo surrealismo, pelo expressionismo e mesmo pelas inovações criadas por um Godard, um Bergman, um Resnais e outros. Mas a narratividade continua até hoje sendo o principal fator de relação do cinema com seu público.
A aproximação do cinema com a literatura também teve outros interesses. Para uma arte que manipulava a imagem em movimento e seus atrativos “mágicos”, - daí o cinema ter sido mostrado nos seus primeiros momentos como número circense - uma parceria com a arte da leitura legitimava seu potencial artístico. Estabeleceram-se então identidades com a literatura e seus autores, atraindo para o cinema os escritores atuando como roteiristas. Nomes como Scott Fritzgerald, Aldous Huxley, Gore Vidal e Willian Faulkner escreveram histórias que comoveram muita gente e ajudaram a fixar o cinema como uma linguagem narrativa eficiente. Mas o que faziam não era, definitivamente, literatura. Faulkner costumava a afirmar, quando contratado para escrever para o cinema: “Faço apenas o que me dizem para fazer; é um emprego e pronto.”
Os próprios critérios de construção das duas linguagens estabelecem diferenças interessantes. Enquanto a criação literária é um processo solitário, - onde o autor se debruça sobre seu objeto de modo concentrado - a criação cinematográfica é um processo coletivo, que envolve desde o diretor,- passando pelo roteirista, o produtor, o diretor de fotografia, o diretor de arte - até aos técnicos diversos que suportam o registro da interpretação dos atores. Aliás, nos atores se localiza uma outra diferença grande entre as duas artes. Se no livro construímos os personagens seguindo as diretrizes descritivas de seu biotipo e personalidade, estabelecidas pelo escritor; no cinema o personagem passa pelo ator, figura que vai “encarnar” o papel, mas que atrela à sua própria imagem ( vida pessoal, antigos papéis, posturas antipáticas e simpáticas, etc) o perfil a ser interpretado. Fica meio “borrada” a fronteira entre ator e papel: Lawrence Olivier será sempre Lawrence Olivier em qualquer papel shakesperiano que interpretar.
Se estas considerações podem ser determinantes, existem outras tão importantes quanto. Por exemplo, se existe uma fluência de leitura estabelecida no texto literário, esta mesma fluência não existe no roteiro escrito de um filme. É quase impossível ler um roteiro e observar nele elementos da literatura. Um roteiro não é um livro. Falta-lhe os apelos da estrutura narrativa. Tanto é fato que muitos deles, originalmente pensados para o cinema, sofrem alterações estilísticas ao serem transformados em livros. A esta altura podemos encontrar autores literários que já escrevem sobre uma estrutura muito próxima à do cinema. Stephen King possui muitos textos que parecem “prontos” para as telas. Assim podemos detectar num Dan Brown (O Código Da Vinci), num Michael Crichton (Jurassic Park) uma literatura “cinematográfica”. Mas isto não é um privilégio das gerações pós-cinema. Existem autores que possuem estas características, mesmo desvencilhadas de uma identificação fílmica. Já saíram bons filmes de livros de Graciliano Ramos (São Bernardo), Clarice Lispector (A Hora da Estrela), Raduam Nassar (Lavoura Arcaica), Joseph Conrad (O Coração das Trevas), Phillip Dick (Do the androids dream with electric sheeps) e outros. Além de todo Shakespeare, que já foi às telas de várias formas.
Mesmo assim uma coisa não resulta em outra com os mesmos méritos. Bons livros já geraram maus filmes e maus livros já viraram bons filmes. O que se faz com o texto é passível de muitos filtros ou enquadramentos. Os livros citados acima, “O Coração das Trevas” e “Do the androids dream with electric sheeps”, foram levados às telas por diretores que os enriqueceram como narrativas, respectivamente Coppola, com seu “Apocalipse Now”, e Ridley Scott, com seu “Blade Runner. A fidelidade foi parcialmente rompida, mas com um resultado que gerou, no cinema, mudanças profundas. Mas será que existe o inverso? Às vezes acontece. Píer Paolo Pasolini filmou seu hermético “Teorema” que cresce na leitura do livro homônimo, escrito também por ele. E existem alguns casos onde a fidelidade plena ao texto literário acontece. John Houston, no seu filme “Os vivos e os mortos”, adapta um conto de James Joyce intitulado “Os Mortos”, que está no livro “Os Dublinenses”, de modo incrivelmente fiel ao texto do autor irlandês. Assistir à película e ler o conto, e vice-versa, é uma experiência de tradução literal de uma coisa na outra. Um caso raro. Já, por outro lado, existem livros (ou autores) “infilmáveis”, como “Ulisses” do mesmo Joyce ou “Grande Sertão:Veredas”, de Guimarães Rosa. Foram feitas tentativas em ambos os casos, mas resultaram em retumbantes fracassos.
O tempo de usufruto das duas linguagens também pode ser considerado aquí. Ler um livro prescinde de um tempo diferenciado do que nos é solicitado para assistirmos a um filme. O cinema possui o “tempo do ritual”, ou seja, um comportamento físico e uma imersão integral no formato da linguagem, que tem um período determinado para acontecer. O advento das mídias eletrônicas, que proporcionam assistirmos aos filmes em casa, alteraram esta fruição, de certa forma, já que as interrupções acarretadas pela rotina doméstica, ou até mesmo um “pausa” ou adiantamentos e retrocessos do DVD, não estão previstos no fluxo da obra. O livro pode ser lido de uma vez só, direto, mas normalmente uma interrupção pode ser prevista. Esta consideração é apenas uma observação, já que cada espectador/leitor possui diferentes processos de absorção do livro ou filme, mas num cinema, - onde a película deve ser vista por ter sido pensada para este ambiente - o tempo é fixo e marcado pela duração de sua exibição.
Se pensarmos que tudo se prende a somente estes critérios, não nos esqueçamos que a tecnologia é parceira indissociável nesta transposição livro/tela. É quase impensável a excelente passagem para o cinema da saga “O Senhor dos Anéis”, de Tolkien, sem pensar nos inúmeros feitos especiais que a informática colocou nas mãos do diretor Peter Jackson. Não é atoa que muitos fãs do livro sequer se incomodaram com o que foi feito nesta adaptação porque o universo mítico do autor estava todo lá, respeitado no que tinha de grandioso e inovador.
Para colocar uma encorpada lenha na fogueira, o escritor/roteirista Guillermo Arriaga, parceiro do premiado diretor de cinema Aljandro Iñarritú, recentemente rompeu com o parceiro porque acredita que o verdadeiro autor dos filmes é o roteirista, e que o diretor apenas adapta sua criação para as imagens. Arriaga reclama para o roteirista o verdadeiro mérito da criação. É um tema a ser pensado, estudado e ponderado, mas que está longe de um esclarecimento. A indústria do cinema (e da literatura) funciona a forma que o escritor questiona a muito tempo e me parece suficientemente estabelecida para romper com esta cadeia de uma hora para outra. Mas a polêmica está lançada.
O assunto é extenso, percebem, mas não posso deixar de finalizar este texto, de caráter introdutório sobre a relação (de amor e ódio, digamos) destes dois gêneros artísticos, sem citar uma expressão usada pelos tradutores de livros ao passarem uma idéia de uma língua para outra: “tradutore/traditore”, ou seja, tradutor/traidor. Não há como ser fiel a um texto na sua tradução. Algo sempre se esvai na transposição. Assim acontece com o cinema e a literatura. O diretor brasileiro, Sylvio Back, ele mesmo roteirista de muitos livros que levou ao cinema, diz claramente que acredita que se deve trair o livro na sua adequação à linguagem cinematográfica: ”Quanto maior a traição, melhor o resultado”.
Cinema e literatura: respeitemos suas especificidades.




Este texto resume a participação do autor num evento literário onde o tema “Literatura e Cinema” foi tratado numa mesa redonda que reuniu escritores, cineastas e professores universitários.

11/08/2007

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