sexta-feira, 21 de maio de 2010

A MODA E SEUS DIÁLOGOS CONTEMPORÂNEOS


SENAI / FIEMG
IV SEMANA DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA
Diretor: Vander José Montesse do Amaral
MODA E SEUS DIÁLOGOS CONTEMPORÂNEOS
Prof. Ms. Afonso Celso Carvalho Rodrigues

Para darmos início à nossa fala nesta noite sobre a MODA E SEUS DIÁLOGOS CONTEMPORÂNEOS, vamos estabelecer alguns pontos que serão interessantes para que nossa abordagem seja abrangente e comporte comentários – mesmo que sejam de caráter introdutório – sobre o papel da moda na construção e na percepção do nosso tempo atual, seja ele classificado como moderno, pós-moderno, líquido ou até mesmo pós-tudo, como foi definido nas palavras do poeta brasileiro Augusto de Campos.
Iniciemos abordando uma reflexão sobre a MODA E PENSAMENTO: Talvez seja este o primeiro ponto a considerarmos hoje. Como produto cultural da humanidade, a moda – no seu conceito mais amplo – é produção de conhecimento e geradora de condicionamentos pessoais e sociais que é, talvez, um dos mais significativos elementos de auto-percepção do homem contemporâneo. O que nos leva a fazer esta afirmativa são os fatos históricos que nos remetem ao princípio gerador do termo “moda”.
Seria interessante voltarmos no tempo para nos lembrarmos de como surgiu a vestimenta do homem. Seguindo as diretrizes referenciais tanto das teorias do criacionismo como as do evolucionismo, recorremos a uma delas – o criacionismo – para citarmos o trecho da Bíblia que relata o momento após Adão e Eva terem comido o fruto proibido,onde lemos: “Então seus olhos abriram-se; e vendo que estavam nus, tomaram folhas de figueira, coseram-nas e fizeram cinturas para si.”
Percebemos, desta forma, que o ser humano desde seus primórdios sentiu necessidade de se vestir e se vestiu, desenvolvendo seu vestuário com o estabelecimento de três princípios básicos (e funções): ele vestiu-se por pudor, por proteção e por adorno. Este sistema básico da roupa se repete até hoje, com as adequações, evoluções e redefinições que dela foram exigidas.
Se analisarmos a história da moda veremos que a roupa evoluiu pouco durante muitos séculos. Existiam os diferentes trajes usados por diferentes pessoas (e culturas), mas não havia a necessidade de se alterar ou mexer no vestuário porque o critério que orientava a sua elaboração era da ordem do pragmatismo, com extensão e exceções para as instituições estatutárias, ou seja, a roupa funcionando como portadora de signos de poder. Foi somente no século XV que aconteceu o fator social/comportamental que gerou o termo “moda”, como o conhecemos atualmente. E este termo, oriundo de uma palavra de raiz latina, “modus”- que significa maneira, modo, jeito – trouxe consigo aquilo que é a conceituação básica da moda até hoje: a efemeridade, a obsolescência, a sazonalidade.
O século XV foi um período de mudanças importantes na ordem do social, com o surgimento da classe burguesa. Estes burgueses ansiosos por status geraram uma alteração comportamental curiosa ao copiarem as roupas dos nobres para a eles se aparentarem. Este ato fez com que os nobres copiados criassem outro diferencial nas suas roupas para continuarem fazendo a diferenciação social, mas que geravam novas cópias, que geravam novas alterações, que eram novamente copiadas e outra vez replicadas, e isto se estendeu como um comportamento instituído que varou os séculos e acontece até hoje com – claro – outros formatos.
Mas este procedimento de diferenciação gerou algo que, para nós, é mais importante nesta abordagem do conceito de MODA, que é a sua expansão para todos os setores de consumo que absorveram este processo cíclico.
A instalação da moda - tal qual a apresentamos - no pensamento contemporâneo é hoje da ordem do cotidiano, e se desprendeu tanto da roupa que podemos falar atualmente sobre moda, sem sequer tocarmos na questão da roupa. A MODA se transformou no signo da alternância que faz com que percebamos o mundo de uma forma calcada na “renovação/consumo/descarte/renovação/consumo/descarte” que permeia desde a roupa até um automóvel, passando pelos eletrodomésticos e até mesmo pelas novas diretrizes comportamentais, nas relações afetivas, por exemplo. Hoje, estar na MODA, prescinde de uma atualização constante e de uma tomada de posição tão necessária que até mesmo quem declara “não ligar para a moda” corre o risco de “estar na moda”, já que a contracultura é hoje postura política e social que possui suas próprias regras de integração na engrenagem do mundo e do consumo.
Visto isto, vamos passar para outra questão da moda na atualidade, que é a MODA E A SUBJETIVIDADE, ou seja, a moda como percepção de si mesmo e construção de si mesmo. Com a pluralidade de possibilidades de se ser hoje, a moda – e a roupa – surge cumprindo o seu papel histórico de engendradora da personalidade, não fugindo da sua função e confirmando a sua tradicional definição de “segunda pele”.
Roupa surge nos nossos tempos como elemento de interpretações semióticas, ou seja, a pessoa e sua vestimenta se tornam portadoras de leituras simbólicas, oriundas de um sistema de comunicação não verbalizada. Com a diversidade de comportamentos e opções de pertença no mundo contemporâneo, a pessoa se vê com possibilidades diversas de definição do seu território existencial através de sua roupa e se comunica com o mundo desta mesma forma. Esta comunicação entre os códigos dos vestuários é exemplar no que se refere à construção de si enquanto interação com o outro. Eu me estabeleço como ser humano único, como entidade cultural particular através da minha roupa e leio (e interpreto) o outro olhando para ele e lendo-o nos seus códigos próprios: este é militar, este é um religioso, este é punk, este é hippie, este é emo, este é clubber, este é pobre, este é rico, este é gay, este é esportista e por aí segue o menu interativo que a interface homem/mundo permite comportar, incluindo aí o rompimento de fronteiras historicamente tradicionais - até mesmo radicais - como o crossdressing que é a absorção por gêneros diferentes das roupas do outro gênero, resumindo: homens usando roupas de mulher e mulher usando roupas de homem, alterando alguns códigos do vestir que enquadram determinadas peças como “roupa de homem” e outras como “roupa de mulher”
Curiosamente, nestes atuais tempos no qual o termo “globalização” chegou com sua definição generalizante e trazendo promessas de possibilidades de achatamento das pertenças, uniformização comportamental, rompimento de fronteiras e unificação dos estilos, a moda vai quebrar esta falsa imagem de estereotipagem e promover a “saudável inconstância” dos papéis culturais. Se a roupa permite nosso engajamento em grupos ideológicos também permite uma variação extensa de papéis sociais: de manhã posso viver um papel de executivo, à tarde adotar uma personalidade esportiva, à noite ser um descontraído freqüentador da balada, apenas alternando minhas roupas, sem que isto seja elemento de discordância na construção da minha personalidade. A pluralidade das possibilidades concomitantes das personas da vida moderna convive de modo coerente num único ser, não sendo elemento de um possível diagnóstico de esquizofrenia social. Somos o que queremos ser onde quisermos ser.
Claro que isto não elimina algumas adequações necessárias, ditadas por normas que se transformaram em ritos sociais: existem figurinos que respeitam o histórico de determinados lugares e devem ter seus critérios cumpridos até mesmo porque assim as coisas funcionam melhor. Nada de encarar roupas inadequadas em ambientes específicos como “normais” em função de uma pretensa liberdade de se usar o que se quer onde se quiser. As regras de etiqueta são, em sua maioria, ditadas pela educação e respeito ao outro, já que nestes critérios nos constituímos. O auto-cerceamento é positivo quando nasce da consciência de cidadania.
A roupa sofreu muitas transformações em seus códigos de uso. Algumas destas transformações são perceptíveis no nosso cotidiano. Havia um estatuto do traje onde não se saía à rua com a roupa de casa: o trajar-se para o convívio urbano tinha seus critérios. Isto caiu há tempos e a invasão da rua pela roupa dita “de casa” é evidente, assim como é claro a democratização do uso da roupa da academia de ginástica. Sinal dos tempos que foram estabelecidos pelas elasticidades das regras e das aceitações das demais pessoas.
A mudança de lugar na hierarquia dos estatutos da roupa também acontece dentro de um amplo espectro. Antes da expansão e deslocamento do alvo da publicidade do mundo adulto para todas as faixas etárias, a interpretação da moda também sofreu alterações. Em tempos outros, anteriores a segunda metade do século XX, o estabelecimento do uso da roupa era imposto dos adultos para as crianças e tinha um aspecto formal centrado na proteção, adorno e pudor, como vimos. Em resumo: as crianças e adolescentes vestiam roupas que replicavam a indumentária dos seus pais. No decorrer destes últimos sessenta anos assistimos uma inversão curiosa: com a implantação dos valores da juventude como predominância comportamental, os pais começaram a se vestir com as roupas ditadas pelos filhos e, conseqüentemente, obrigados a assumirem até a terceira ou quarta idade um valor que extrapola o aspecto especificamente visual da roupa e se perceberem obrigados a terem de cumprir até a velhice a nova função da moda: a sedução.
Podemos encarar estes casos como avanços de pertença, mas, como toda força gera uma força imediatamente oposta, assiste-se a um crescimento espontâneo de algumas regulamentações do vestuário em função da demarcação de terrenos de auto-reconhecimento. O mercado do luxo está aí para exemplificar que determinados códigos de elegância são reféns de regras e comportamentos pré-estabelecidos. Mesmo nos programas televisivos, que se propõe a transformar “uma pessoa em outra”, se desenham exatamente calcados na inserção deste “ente a ser transformado” num jogo de regras e códigos que o retiram de sua “banalidade cotidiana”, onde era vítima da ausência de limites ou do excesso de informalidade, para inseri-lo no seu oposto: o “engessamento comportamental” através da imposição de uma roupa (não moda) que não é e nunca será a dele. Posso transformar alguém desta forma? Até posso, quando esta nova pessoa for desenhada por ela mesma, repleta de suas particularidades e não das especificidades do vestuário comercializado pelos patrocinadores. Imaginemos, por alguns pequenos e angustiantes segundos, o que é o retorno destas, aí sim fashion victims, à sua rotina de horizontes agora mais curtos ainda.
Se a roupa, como produto direto da moda, faz estes desenhos de uma pessoa, a extensão do raciocínio de identidade particular migrou da “segunda pele” para a primeira pele, estabelecendo os novos tratos da pessoa com seu corpo. Neste diálogo MODA E CORPO encontramos um universo de novos procedimentos gerados pela absorção contemporânea da cultura e dos códigos de alteridade. As transformações atuais do corpo em função da moda é um dos assuntos que mais ocupam a pauta daqueles que discutem não só os códigos de pertencimento, mas também os desdobramentos do tema do corpo como “habitação”, tratado como território passível de alterações e mudanças.
Os procedimentos da cosmética são os primeiros a serem lembrados por nós, já que é o recurso de alterações físicas mais antigo, que acompanha o ser humano por milênios. A tecnologia aplicada na fabricação destes produtos alcança hoje patamares nunca antes pensados e resultados de igual proporção (e preços também). Retardamento das marcas do tempo, cremes hidratantes, pinturas e pancackes fazem do rosto e do corpo um lugar de interferências surpreendentes. A acessibilidade ao make-up é um elemento a ser considerado já que existem marcas e “marcas” que suprem democraticamente o mercado, independente de classe econômica, sexo ou estrato social.
Fazendo par com a cosmética, a moda ampliou o uso das transformações corporais que também acompanham o homem na sua trajetória evolutiva. Oriundos de rituais sagrados ou sociais, os procedimentos de alteração corporal se re-significaram, foram até mesmo, em alguns casos, esvaziados de seus intuitos originais e caíram no terreno da superficialidade, tal qual abordamos aqui. Tatuagens, escarificações, piercings, brandings, implantes de aço cirúrgico, extirpações ósseas, correções e alterações odontológicas, próteses siliconadas ou de titânio, alterações genitais, implantes capilares, lipoaspirações, extrapolações na definição muscular por excesso de exercícios ou ingestão/aplicação de “bombas” e outras variantes que a cirurgia plástica a cada dia desenvolve, são os novos códigos de pertenças e instalação de alteridades que abarcam desde uma tradicional e pacata senhora de uma vilazinha do interior do Brasil, que fura a orelha para colocar um brinco, até um adolescente membro de mais uma possível tribo urbana criada a, possivelmente, um minuto atrás nos subúrbios (ou nas coberturas milionárias) das grandes cidades do mundo, que cinge e bifurca sua língua para ganhar uma “identidade réptil”.
Se considerarmos a moda no seu viés tirânico, geradora de desconfortos sociais e pessoais, e, por isto mesmo, alterando alguns critérios perceptivos como pessoa/corpo, encontraremos o perfil mais cruel da sua relação com o nosso suporte físico: as distorções na auto-percepção. O império da publicidade, a imposição de corpos idealizados, a ilusão de uma perfeição mentirosa através da alteração das imagens pelo photoshop, a promessa de uma sedução garantida por sensualidades deslocadas impostas por ídolos midiáticos, o fantasma das adiposidades excessivas, a eleição da comida como a grande inimiga da saúde na modernidade, tudo isto, junto ou separadamente, criou este corpo bulímico e anoréxico que infesta a mídia e, conseqüentemente, as casas das pessoas. Se esta realidade cruel não faz parte do nosso cotidiano, e daí não crermos na sua amplitude, basta uma passada rápida no Orkut ou no Facebook onde comunidades de adolescentes (e não tão adolescentes assim) tratam do assunto com uma naturalidade constrangedora e com uma triste intimidade: lá a anorexia é tratada como “Ana”, como uma entidade viva e amiga, capaz de determinar atitudes radicais que terminam gerando corpos adultos pesando de 25 a 30 quilos, em alguns casos.
A construção da subjetividade encontra outros nichos de alteração comportamental. Os desequilíbrios gerados pela hiper-oferta mercadológica do vestuário associada à obsolescência programada da moda, fermentados pela perda da percepção dos limites do poderio de compra, gera um perfil muito comum no universo que tratamos aquí, que são as fashion victms, ou vítimas da moda. Às vezes vistas como um perfil aceitável (e até mesmo simpático), na verdade escondem uma obsessão de consumo repleta de distorções perceptivas de si. Os viciados em consumo são personagens oriundos das patologias sociais atuais, aquilo que a psiquiatra Julia Kristeva chamou de “os doentes da alma contemporâneos.” Com a queda do conceito da pessoa como “comprador” e da ascensão da pessoa como “consumidor”, estas estranhezas comportamentais tendem a ser vistas como “normais”. Mas são geradoras de angústias intermináveis e muitas terminam na horizontalidade dos divãs psicanalíticos ou na armadilha da panacéia farmacológica dos ansiolíticos.
Façamos um link na questão entrevista acima – moda, comércio e consumo – para fazermos nossa consideração seguinte: MODA E MERCADO. Lembramos: Moda é prazo de validade. Parece-nos óbvio que numa estrutura de efemeridade, que é a mola mercadológica da roupa, a questão da produção e mercantilização do vestuário seja um assunto de extrema importância. Se eu me construo como pessoa através (também) da roupa que uso, e se este uso depende da sazonalidade que o comércio cria, o mercado da roupa deve ser visto, hoje, na sua maior amplitude. A roupa que vemos numa vitrine de um shopping sofisticado ou na banca de um saldão popular passou pelo mesmo processo de concepção enquanto mercadoria. A estratificação do mercado consumidor gera diferentes produtos, mas o “discurso da moda” está presente no passo-a-passo que se inicia na estratégia de marketing e termina no brechó ou no descarte.
Existe, porém, um nicho de exceção: o mercado de luxo. Neste setor, cada vez mais emergente no Brasil, - haja visto a enormidade de shopping centers sofisticados e da abertura freqüente de lojas de marcas de exclusividade que se alastra em nossos grandes centros urbanos – comercializa-se peças de vestuário e acessórios de durabilidade mais extensa, que soam como investimentos perenes, e mesmo se sofrem certo desgaste ao ver seu design datado pelo passar do tempo, ainda ganham uma sobrevida sobre a classificação de vintage. Um vestido Armani, de 20 mil reais, uma bolsa Louis Vuitton, de 30 mil reais, um sapato Christian Louboutin de 10 mil reais ou um colar Von Fustemberg de 400 mil reais, geram outro pensamento de demarcação de território de pertença onde estas mercadorias circulam. Se as pessoas que portam tamanho investimento sobre o corpo não possuem uma visibilidade pública ampla (tem que se esconder da horda comum), aquelas pessoas que, contrariamente, possuem grande circulação pública e não tem tal poder aquisitivo, se vingam (com ou sem consciência disto) desta exclusão econômica usando as falsificações destas marcas que hoje invadem o mercado possuídas de um trânsito constrangedor que não permitem o acesso ao objeto físico, mas permitem o acesso ao simbólico, causando um rombo de proporções gigantescas no mercado oficial da moda.
A trajetória da roupa e sua absorção como produto precisa de diferentes estágios e de diferentes profissionais que são os estratos comerciais desta indústria que movimenta milhões pelo mundo. A assimilação da roupa como objeto de consumo envolve desde o criador de alta-costura, passa pelos técnicos da indústria da confecção, chega aos pontos de venda, é adquirida pelo consumidor que, na maioria das vezes, se desfaz dela antes mesmo de ter todo o potencial de durabilidade da peça esgotado: jogam-se fora roupas novas.
Este ciclo que agora citamos possui estágios que antecedem tanto a função inicial do estilista quanto o descarte final do consumidor: antes do trabalho do estilista existe o burocrata da maison, os marqueteiros de plantão, os pesquisadores de mercado e todo o aparato técnico-administrativo que vai ditar o que será usado e criado com dois ou quatro anos de antecedência, impingindo uma renovação de coleções que, se antes eram duas por ano - primavera/verão e outono/inverno – agora chega a ter, em casos extremos, seis a oito coleções anuais. Na outra ponta, a do descarte, existe os desdobramentos do uso desta roupa tornada obsoleta pela alternância das estações: se seu fim não for o mais imediato, o lixo, ela vai para os brechós, para as cooperativas de reciclagem de tecidos, para os ateliês de produção de moda alternativa (amparados pelo conceito do politicamente correto) ou é doada para vítimas de catástrofes ambientais e climáticas. Neste último caso a ação humanitária ajuda a sair do guarda-roupa atulhado de muita gente aquelas pecinhas que “um dia, quem sabe, podem voltar a ser moda”. Como se diz nos círculos preconceituosos, no Brasil “o pobre não muda de roupa, é a roupa que muda de pobre”. Cruel!
Tocamos neste assunto da roupa descartada para fazermos uma consideração sobre a sustentabilidade relacionada ao reaproveitamento de peças do vestuário que, se hoje o viés da consciência ecológica vê com simpatia as cooperativas que criam novas peças a partir destes refugos, existe as posturas mais radicais como a de grupos que pregam a interrupção da indústria do vestuário argumentando seu alto grau de poluição ambiental e também dizendo que o que já existe de roupa feita no mundo hoje pode vestir a humanidade por uns bons séculos vindouros. Este discurso é controverso se olharmos para a imensidão do parque industrial que envolve este processo de feitura do vestuário, mas a roupa e seu contexto de mercadoria já está entronizada no imaginário do consumidor e reverter este caminho necessitaria de um esforço hercúleo por parte de todos, sem dizer de questões como o que fazer com toda a tecnologia e mão de obra constituinte desta indústria.
A ampliação do mercado entre as nações do planeta gerou uma série de desequilíbrios comerciais em algumas economias e lucros exagerados em algumas nações. Países emergentes entraram no mercado com fome atávica de lucro, gerado por séculos de inanição econômica, o que fez com que alguns escrúpulos caíssem por terra. A China, hoje, é um dos maiores pólos de produção e comércio de vestuário. Com um investimento maciço em áreas como a da indústria têxtil, de calçados, de maquinário específico e com uma vastidão de pessoas disponíveis no mercado de trabalho interno - que faz um assalariamento baixo para os padrões semelhantes no restante do mundo - a exportação gigantesca dos produtos chineses derrubou a indústria concorrente nos mercados onde penetrou. No Brasil assistimos a uma brutal queda no setor têxtil e de calçados, com a capitulação de muitas empresas ao cerco dos produtos orientais, gerando uma crise sem igual. Mas, se os orientais dizem que a palavra crise significa para eles também “oportunidade”, a indústria brasileira se recupera apostando exatamente no diferencial criativo. O know how desta estratégia de mercado chinesa se mostrou decifrável e adquirível e como a nossa potencialidade criativa é exercício já entronizado na nossa cultura, a superposição dos dois aspectos gerou a superação que apostamos no momento.
Moda é tecnologia, processo de conhecimento que envolve uma confluência de saberes
tecnológicos. Tecnologia não é só informática, como normalmente se associa hoje, é
também o domínio técnico de todas as etapas que compõem a criação, execução,
comercialização e reaproveitamento do vestuário. Como exercício de conhecimento, a
moda precisa de atualização ou redefinição destes saberes.
A evolução dos quesitos técnicos é imensa neste campo específico de pesquisa e o mercado é suprido por novos materiais têxteis que permitem concepções revolucionárias na moda. Nossa concepção de “tecidos inteligentes” já está muito além daquele tecido que não amarrota. Hoje temos tecidos que permitem maior adequação térmica, ajudam a eliminação da transpiração, “lembram-se” da forma do corpo do usuário e até administram doses de remédios e outros confortos.

Mas temos que estar atentos a muitas questões conturbadas da ordem comercial e política que podem ainda minar o nosso comércio e a indústria. Para citar um exemplo que esteve nos noticiários recentes é a divulgação da receita de importação de roupas pelo Paraguai que, com seus seis milhões e quinhentos mil habitantes aproximadamente, importa cinco vezes esta quantia em itens de vestuário. O que acontece com este excesso de peças pode ser respondido observando os pontos de contrabando na fronteira deste país vizinho com o Brasil.

Somos capazes de nos impor no mercado internacional com um produto genuíno nosso? Com certeza sim. Se pudéssemos pinçar um único exemplo poderíamos mostrar o imenso sucesso ( paradigmático) das sandálias Havaianas em todo planeta. Este é o caminho: em tempos de uniformização dos estilos e de uma moda assumidamente globalizada, o que é interessante são os sotaques: os nossos criadores devem conhecer e perceber os dialetos brasileiros e exercitá-los, sejam eles nacionais, estaduais ou municipais.
Juiz de Fora é uma cidade que possui no seu histórico econômico e industrial a presença da produção têxtil. A força desta indústria colocou a cidade na virada do século XIX para o XX num tal patamar de importância que forjou riquezas e um progresso único, trazendo para a cidade novidades que a tecnologia da época tinha como de ponta: uma usina de geração de energia hidrelétrica e uma estrada com acabamento inovador para escoamento de sua produção. Por um grande período a cidade teve seu nome ligado à produção têxtil e de vestuário, mas nunca à criação de moda. É recente o despontar de criadores originais no âmbito da cidade, o que podemos olhar com ar otimista, já que alguns deles figuram com destaque num cenário onde a disputa é ferrenha por espaço e visibilidade, e de reconhecida rapidez na alternância de personagens. Este fato traz um alento para aqueles que ansiavam por uma nova colocação da cidade no mundo da roupa, agora munida do diferencial da criação original.
A indústria do vestir emprega um enorme contingente de operários que movimentam a produção dos milhares de itens que o termo “moda” pode abarcar. Já enumeramos anteriormente os diferentes estágios do caminho da roupa e que todos estes estágios envolvem pessoas, empregados, que promovem este fazer: se nos ateliers da Avenue Montaigne, em Paris, estão os super-criativos e especializados mâitres da aute-couture, em Bangcoc, Tailândia, operários executam peças de roupas em sistema de semi-escravidão; se na rua Oscar Freire, em São Paulo, balconistas poliglotas atendem sua clientela abonada, no Bom Retiro, na mesma cidade, imigrantes bolivianos costuram moletons para patrões tirânicos em situação de total desrespeito à sua dignidade humana. No meio destes extremos circulam os operários formalizados, a mão de obra especializada, os portadores de saberes específicos de modelagem, estamparia, moulage, e etc. de cuja demanda o mercado está sempre carente. Neste dias passados, com o esfriamento repentino da temperatura, numa só semana criou-se uma demanda de 40 mil vagas para a indústria da confecção no Sudeste, segundo fonte do jornal Folha de São Paulo. Esta perspectiva de mercado de trabalho abre nossos olhos para outra situação relacionada com nosso recorte comercial, que é a instalação de cursos de preparo de pessoas para ocupação destas vagas.
O oferecimento de cursos técnicos e artísticos para preparo de profissionais para atuarem na indústria do vestuário, sejam estes cursos particulares ou públicos (municipais, estaduais ou federais) cresce atualmente justamente porque o mercado precisa desta mão de obra. Isto nos leva a tratar de outro aspecto da moda hoje que é MODA E EDUCAÇÃO.
Como disse na minha apresentação, sou professor do Instituto e Artes e Design, da UFJF, e fui um dos envolvidos na reforma do antigo curso de Educação Artística para o atual Bacharelado Interdisciplinar em Artes e Design, que oferece, aos alunos ingressos no nosso Instituto, opções profissionais que abarcam a formação em Educação Artística, em Design, em Cinema, em Artes Visuais e em Moda. Academicamente fomos pioneiros na implantação do ensino de moda em Juiz de Fora em 2007, através do Curso de Especialização em “Moda, Cultura de Moda e Arte”, que já está na terceira turma neste ano de 2010. Vimos o nascer do pensamento educacional voltado para este campo de reflexão artística e prática e o vimos ser completado por outras instituições locais que implantaram seus cursos de moda no formato de tecnólogo do vestuário, o que demonstra que o mercado tem potencial de absorção destes profissionais. Temos no SENAI uma prova viva de que a demanda é real e que a qualificação de excelência é necessária para se ter uma produção industrial de alta qualidade técnica e criativa. Completando o seu projeto educacional, o Instituto de Artes e Design já tem em andamento seu Mestrado onde os estudos contemporâneos da moda também será privilegiado, antevendo desta forma a extensão do pensamento acadêmico para as reflexões que este tema requer. Acredito que, em 2011, teremos esta oferta de qualificação acadêmico/profissional já sendo oferecida à comunidade.
? Onde podemos fazer outra relação da moda na atualidade, aproveitando a abordagem que fizemos do ensino formal, tendo como referência os estudos da moda localizados num Instituto de Artes e Design? Ora, a academia já olha para a Moda com o olhar voltado para o seu papel na construção cultural. Moda, como a consideramos na abertura desta nossa conversa, é objeto da constituição cultural contemporânea, daí podermos ver os seus estudos tranquilamente localizados na área de Ciências Humanas e Artes. Se os desdobramentos possíveis do ensino da moda passam pelas qualificações técnicas, administrativas e das investigações culturais, este ensino passa também pelo viés de CRIAÇÃO, que, cremos, é fundamental para a sobrevivência do sistema da moda.
Criadores, portanto pensadores da moda, são a alma do assunto. Num exemplo básico associativo, se os técnicos constituem simbolicamente o “corpo físico” da construção da roupa, o criador constitui sua “alma”, que determina a personalidade, o estilo, a renovação, a investigação, enfim,o desenho cultural da roupa no mundo. Como muitos de vocês já devem ter deduzido, um não vive sem o outro. A interdependência entre o pensar e o fazer do vestuário é vital e o reconhecimento disto é perceptível na interação do estilista ou criador de moda com seus parceiros de ateliê, modelistas, costureiras, etc. Um dos desfiles mais tocantes dos eventos recentes das produções de criadores brasileiros foi o da coleção outono/inverno de 2008 do costureiro Ronaldo Fraga, onde as modelos desfilaram as criações deste irrequieto artista mineiro atravessando uma passarela repleta de costureiras que trabalhavam em suas máquinas de costura. Desta forma Fraga fez uma leitura romântica e respeitosa – uma homenagem, na verdade – do papel destas profissionais que dão forma física às idealizações dos estilistas.

Um último aspecto nos falta comentar: as interfaces entre MODA E ARTE. Este tema pode parecer estranho para aqueles que desconhecem o processo de criação dos artistas contemporâneos. A arte, assim como a moda, possui um forte elemento de interdisciplinaridade. Encontramos hoje artistas que trabalham com as linguagens já estabelecidas para o fluxo de seus discursos plásticos, mas no século passado houve uma grande abertura nas abordagens destes pensadores que incluiu o pensamento conceitual e nos nossos atuais anos 2000 a arte transita com conforto entre as manifestações culturais e faz parcerias com a ciência. A pintura, a escultura e o desenho continuam veículos e suportes para o exercício do pensamento dos artistas, mas já fazem par com a arte digital, a computação gráfica, a performance, a instalação, o conceito, a genética, as altas tecnologias que entraram no cardápio de possibilidades de expressão.
Toda e qualquer possibilidade de reflexão que amplie os conhecimentos do homem são objetos do discurso artístico, pois este se estabelece não só no campo estético, que é onde mais o situamos, mas também se instala nos domínios da filosofia, da história e de outros fazeres e pensares humanos. Se moda é um termo de ampla aplicação, a arte comunga com a mesma condição de pluralidade: o conceito da arte está na culinária, na arquitetura, na dança, na música e na moda.
O atual estágio dos criadores de moda é muito semelhante aos procedimentos da produção artística. A concepção, a confecção, o acabamento, a performance da passarela, a criação de novas percepções das formas, e, principalmente, o conceito é o que direciona a mão e a cabeça dos estilistas no momento de suas complexas elaborações do vestuário. Para situarmos melhor nossa observação, me permito usar um exemplo clássico sobre a criação da alta costura: Uma das perguntas mais freqüentes que ouvimos das pessoas ao assistirem a um desfile de criadores como John Galliano (Maison Christian Dior) e Karl Lagerfeld (Maison Chanel), - dois nomes da vanguarda da moda, que colocam na passarela roupas/ esculturas quase impossíveis de se vestir - é: Como se usa isto?
Na verdade, o que estes artistas estão mostrando ali no seu desfile é o CONCEITO da sua coleção, e as suas criações dão diretrizes para estabelecerem o que será usado ou será tendência para a roupa daquela estação a partir de seu ponto de vista artístico.
Mas as artes plásticas olham para a roupa de outro modo: como assunto cultural, passível de reflexões e reposicionamentos de conceitos, de maneira a possibilitar novos pensares no público que verá os trabalhos em galerias de arte ou museus. Por exemplo, citaremos dois artistas que trabalham com a moda com dois olhares diferenciados. Um deles é a artista brasileira Nazareth Pacheco, cuja obra faz uma reflexão sobre a roupa como possível veículo de considerações sobre a violência cotidiana imposta pelos códigos estruturais e afetivos da roupa. Para tal a artista confecciona vestidos feitos com aros metálicos e giletes; faz adereços (pulseiras, colares, etc.) usando agulhas, alfinetes e material de sutura cirúrgica; cria, enfim, uma série de itens relacionados com a moda alterando sua estrutura material e redirecionando nossa interpretação da moda para uma reflexão quase filosófica sobre a simbiose entre o corpo e as peças torturantes que o vestuário pode impingir ao seu usuário.
Outro artista que podemos citar é o artista inglês Danny Treacy, cujo trabalho é construído de modo a deslocar para outro contexto o uso da roupa e seu descarte e aproveitamento. Ele anda pelas ruas de Londres recolhendo peças de roupas descartadas por seus antigos usuários colhidas ao acaso. Estas peças são levadas para o seu ateliê onde ele as veste em combinações inusitadas, registrando tudo em fotografias, obedecendo as marcas deixadas pelo uso (ele não lava as roupas para que elas mantenham os cheiros e as secreções corporais originais). Nesta montagem e criação de novos figurinos, Treacy faz um comentário irônico e ácido sobre a identidade, a alteridade, a aceitação do outro e preconceito. Ele intitula este trabalho de “ELES”, e se colocando nesta posição de assimilação das diferentes identidades transforma o EU em ELES, o ELES em NÓS. O artista mostra, de certa forma, nosso distanciamento do corpo do outro pelas regras da assepsia exacerbada do mundo moderno.
Duas outras formas de veiculação de trabalhos onde arte e moda se cruzam é no campo da fotografia e do cinema. A foto de moda era apenas um registro da roupa para servir de modelo para as pessoas consumirem, e com o tempo se transformou numa arte autônoma. Os grandes nomes da fotografia de moda já saíram das páginas das revistas e estão nas paredes das galerias de arte. Podemos citar uma infinidade de fotógrafos que fizeram história neste filão e que vem tendo a adesão de novos artistas que concebem inovações na imagem da moda contemporânea agregando novos códigos de leitura àquilo que vem sendo desenvolvido a mais de um século. Colocaremos só como uma referência a artista norte-americana, Nan Goldin, cujo trabalho de moda extrapolou as fronteiras das imagens comerciais do gênero da publicidade e incluiu nas suas fotos de moda comentários sociais polêmicos. Goldin eliminou os modelos profissionais, de beleza estereotipada, e incluiu nos seus ensaios personagens apartados da sociedade, que vivem em guetos do submundo das drogas, do crime e das sexualidades marginais. As imagens da fotógrafa são um tratado sobre o “outro estranho a nós”, de cujo mundo estamos distantes, mas que são seres que também compõem a estrutura da sociedade.
No cinema temos o trabalho cada vez mais reconhecido dos figurinistas, cuja confecção das roupas cenográficas é importante dado para a representação dos personagens. Seja num filme passado no nosso tempo, ou num filme localizado em determinado período histórico, estes artistas da roupa fazem um trabalho de cunho artístico refinado, trabalhando com materiais diversos, tirando deles sua potencia maior para terem uma harmonia plástica com os demais profissionais que atuam na direção de arte. O grupo de personalidades que atuam neste setor é grande e também listá-los aqui é tarefa difícil. Só como uma referência, podemos citar o figurino do filme “Alice no País das Maravilhas”, do diretor Tim Burton, onde o trabalho da figurinista Colleen Atwood, vencedora de alguns Oscars do setor, mostra como a criatividade e o senso artístico pode gerar desdobramentos que ultrapassam os limites da tela e inspirar coleções de outros estilistas e entrar no vestuário cotidiano das pessoas.
Creio que podemos dar por encerrada nossa apresentação. Como eu disse inicialmente, todas as considerações teriam um caráter introdutório, já que qualquer um destes tópicos relacionados aqui é passível de profundos estudos e reflexões. O que nos interessa dizer é que a roupa, assim como a alimentação, o abrigo e a luta pela sobrevivência são assuntos impossíveis de serem deslocados da existência humana. E para os que têem na roupa e na moda seu campo de trabalho e/ou perspectiva de atuação, resta-nos o conforto de poder dizer que, felizmente, as pessoas continuam nascendo peladas.

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