quarta-feira, 9 de junho de 2010
VII SEMANA DE ARTES E DESIGN
CINEMA E LITERATURA: CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS
Tudo no mundo existe para acabar num livro
Mallarmé
O intuito de nosso discurso é fazer um comentário que possa trazer novos olhares sobre a relação entre o cinema e a literatura, assunto que já permitiu muitas reflexões e apresentaria sinais de um possível esgotamento conceitual, mas que se renova mostrando que é ainda passível de novas abordagens.
Ingmar Bergman, num texto cortical para a compreensão das relações de dissídio e de aproximação entre a Literatura e o Cinema, afirmou, de forma radical, que « o cinema não tem nada que ver com a literatura ». Esta posição maniqueísta é manifestamente um paradoxo, principalmente para o próprio cineasta que soube colher na literatura, com interessante sistematicidade, um veio profícuo com conexões inequívocas com o filme, nomeadamente no campo da narrativa.
A história das relações entre a Literatura e o Cinema é pautada ora pela interseção, ora pelo dissídio. Os cineastas, desde cedo, viram na Literatura um universo de temas e de estruturas narrativas que poderiam constituir uma verdadeira fonte de inspiração e de trabalho. Na aurora da sétima arte, Griffith não hesitou em reconhecer que colhera em Charles Dickens modelos narrativos e de técnicas, além de uma concepção de ritmo e de suspense, articulando duas ações simultâneas e paralelas. Já em 1867, Méliès adaptava da literatura, Fausto e Margarida, em 1868, A Gata Borralheira, para, em 1902, iniciar o seu percurso de versões de obras de Júlio Verne com Viagem à Lua.
O Cinema, pela sua complexidade artística, tem suscitado inúmeros estudos. Quer o abordemos no domínio semiótico, na linha de Metz, Lotman, Garroni ou Chatman, quer o abordemos em termos estéticos ou históricos, na linha de Eisenstein, Bazin ou Mitry, o Cinema não deixa nunca de estabelecer relações com a Literatura. Destacamos uma delas quando afirmamos: «É, pois, teoreticamente ajustado postular o cinema como linguagem que se articula no fílmico e falar em linguagem cinematográfica em termos homólogos àqueles quando falamos em linguagem literária».
Assim, a proximidade narratológica entre a Literatura e o Cinema é, deste modo, um tema que merece a devida atenção, sempre que recordamos a contigüidade entre estes dois sistemas semióticos. Como bem evidenciamos, «O texto fílmico narra freqüentemente uma história, uma seqüência de eventos ocorridos a determinadas personagens num determinado espaço e num determinado tempo, e, por isso mesmo, é tão freqüente e congenial a sua relação intersemiótica com textos literários nos quais também se narra ou se representa uma história».
Os séculos XX e XXI são os séculos da imagem. Este é um dado cultural irrefutável. O cinema, - depois a televisão e o vídeo, e, agora a informática - dominam o imaginário coletivo. A palavra e a escrita passaram a interagir com outros discursos: o som, a palavra e a imagem fundem-se em novas noções de texto que começa a emergir com uma mudança em termos de paradigma cultural.
O cinema como máquina de "criação de imagens" coloca novos desafios na nossa relação com o mundo e com o real, já que cada imagem é única e fornece uma nova experiência de mundo visível. O cinema não fala das coisas como na literatura, mas as mostra.
Os novos paradigmas contemporâneos lançam, então, o desafio de fundarmos um verdadeiro diálogo interdisciplinar e transdisciplinar, sem quaisquer visões redutoras nem preconceitos inibidores da criatividade artística ou científica.
Se uma cultura de raiz logocêntrica ganhou foros de universalidade após a invenção da imprensa, o final do século XX e início do XXI parecem ser cada vez mais caracterizados, nesta linha de sentido, por uma cultura pós-literária.
Eventos como a festa do Oscar e, de resto, como os festivais regularmente realizados em distintas cidades, com diferentes temáticas e enfoques, são excelentes por permitir uma reflexão sobre a sempre vigente relação literatura-cinema, com suas interseções, confluências... e divergências. Poucas formas artísticas estabelecem entre si tantas relações de sentido mútuo, ainda que sujeitas a entreveros e embates, acusações de “infidelidade autoral”, polêmicas sobre liberdades de criação, etc. – até porque são diferenciadas as linguagens e distintos os respectivos códigos e modos de funcionamento: narrativa literária e narrativa fílmica se distinguem e, na maioria dos casos, contrastam- se; são sempre difíceis as transposições de uma para a outra, pois as características intrínsecas do texto literário – originalidades, subjetividades, entrelinhas, elaborações – não encontram, por princípio, a mesma expressão na narrativa cinematográfica.
A par das diferenças, porém, entre a página e a tela há laços estreitos – em forma de mão e contramão: a página contém palavras que acionam os sentidos e se transformam, na mente do leitor, em imagens; a tela abriga imagens em movimento que serão decodificadas pelo expectador por meio de palavras. Entre a literatura e o cinema há um parentesco originário, diálogo que se acentuou sobremaneira após a intermediação dos processos tecnológicos. Assim, a enorme e expressiva influência da literatura sobre o cinema tem sua contrapartida, por meio de um ‘cinema interior ou mental’ sobre a literatura e as artes em geral, mesmo em uma época precedente ao advento dos artefatos técnicos.
Optando pela modalidade narrativa, o cinema roubou da literatura parte significativa da tarefa de contar histórias, tornando-se, de início, um fiel substituto do folhetim romântico. E, apesar de experimentações mais ousadas, como a "Avant-Garde" francesa da década de 1920, ou o surrealismo cinematográfico, que buscaram fugir dessa linha, a narratividade continua a ser o traço hegemônico da cinematografia.
Daí, adaptar para o cinema ou para a televisão – meios reconhecidamente ligados à cultura de massa – obras de autores como Shakeaspeare, Dostoiévski, Tolstói, Balzac, Flaubert, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, (para citar apenas alguns nomes de relevo no panorama universal e nacional) – equivale a trazer para as mídias o prestígio da grande arte ou, no dizer de alguns, tornar a arte erudita acessível ao grande público. Mas a adaptação de obras literárias para o cinema e, posteriormente, para a televisão – meios que privilegiam a linha narrativa – também não se tem feito sem conflitos, pois as adaptações resultam sempre em empreendimentos insatisfatórios.
Não se pode negar que, principalmente em seu período clássico, o cinema tenha procurado na aproximação com a literatura uma forma de legitimar-se. E além das freqüentes adaptações de obras literárias para a tela, tornou-se prática corrente, em particular naquele período, a contratação de escritores como roteiristas. Assim é que, em Hollywood, notáveis escritores como Scott Fitzgerald, Aldous Huxley, Gore Vidal, William Faulkner, James Age e Nathanael West, dentre outros, tornaram-se os contadores de muitas histórias que comoveram o grande público e garantiram o sucesso de vários empreendimentos. Saber se tais roteiros traziam a marca da criação literária já é uma outra questão, que talvez possa ser analisada a partir da postura de alguns desses escritores-roteiristas. Faulkner, por exemplo, não fazia segredo sobre a natureza de sua atividade em Hollywood: "Faço apenas o que me dizem para fazer; é um emprego, e pronto".
Por outro lado e em outra vertente, ao praticarem exercícios literários, cineastas e roteiristas, via de regra, imprimem às suas narrativas muito mais o teor, o timbre, o ritmo, o timing fílmico – e menos o literário. E, além disso, mesmo que sua estória e trama seja de ação, de movimento, costumam lidar com o onírico, o sonho, e com o psicológico – que é, sabemos, elemento recorrente ao extremo no cinema, do expressionismo alemão a Stroheim, de Ingmar Bergman a Luis Buñuel, de Alan Resnais a Jean-Luc Godard. Não poderia ser de outra forma, pois são eles, antes e acima de tudo, pessoas do cinema.
Ora, em literatura tudo há de ser elaborado de acordo com os métodos próprios e intrínsecos à escrita ficcional. Na maioria das vezes, o texto literário de gente do cinema carece, em sua construção, de uma personalidade própria, ficando a meio caminho entre o cinematográfico e o literário: entre altos e baixos, persegue certa ilusão de fusão de formas, meios e linguagens.
“O romance, na verdade, sempre foi uma forma literária propensa ao diálogo com outras linguagens”, ensina o professor Flávio Carneiro, da UERJ, autor de Da matriz ao beco e depois, e o cruzamento da literatura com outras formas artísticas tomou um novo rumo, na década de 1980, com a produção de obras que “incorporam ao universo romanesco a linguagem do cinema, da televisão”.
Tudo isso propicia um exercício de reflexão e indagação: as incursões de cineastas e de profissionais de tv na literatura podem ser bem resolvidas e bem sucedidas? O caso é que um diretor de cinema ou de tv quando vai à literatura leva com ele uma bagagem da linguagem – o ritmo, o corte abrupto, o esperar pronto entendimento do leitor, qual um espectador – e assim comete pecados e deslizes marcantes. Ao contrário, um escritor que vai para o cinema – como roteirista, quase sempre – o faz melhor, sabe adaptar, mostra-se mais seguro, os resultados são melhores: caso de Rubem Fonseca, dos exemplos clássicos dos escritores norte-americanos com Hollywood, e ainda de Jean Louis Carrière e Dalton Trumbo no cinema europeu.
Sob essa perspectiva, é comum cineastas em incursões literárias atuarem numa espécie de contramão, na via inversa do terreno do relacionamento – o do embate –entre literatura e cinema; os questionamentos sobre “apropriação de obras literárias por cineastas”, ao realizar filmes, ganha outro contorno, de sinal trocado: no caso, um cineasta não pega um livro e faz um filme (e vale lembrar que para Autran Dourado “não existe livro filmado, existe filme baseado em livro”), mas escreve um livro com elementos e cacoetes de filme. Sai de seu habitat original e vem para outro, mas utilizando o mesmíssimo instrumental, na vã tentativa de sintetizar o mimetismo palavra-imagem.
Desejariam cineastas e roteiristas, ao escreverem uma obra literária, responder a Stanley Kubrick –para quem “tudo que pode ser escrito e pensado pode ser filmado” – provando que ‘tudo que pode ser filmado poderia ser escrito?’...
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