segunda-feira, 27 de setembro de 2010
Uma outra história americana
Este post é o texto que lí na apresentação que fiz no Ciclo de Cinema da Letras neste semestre cujo tema foi intolerância.
UMA OUTRA HISTÓRIA AMERICANA
Diretor: Tony Kaye
Está na mídia hoje as atitudes do governo da França relativas aos imigrantes do Leste Europeu que configura uma intolerância radical que inclui, entre outros desenhos discriminatórios, o desrespeito à etnia (são estrangeiros), à classe social (são pobres) e a representação política (são “peso morto” no processo eleitoral). A França, sempre vista como refúgio político daqueles que se sentem oprimidos nas suas pátrias, agora expulsa de seu território pessoas que considera “problemáticas”. O cardápio de atitudes do Estado francês é, porém, mais amplo que isto: há proibições do uso de véus para muçulmanas em lugares públicos, há estratégia de filtragem de povos do Terceiro Mundo nos aeroportos e tudo junto mostra que no coração da Europa, no país onde nasceu o lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, grassa a intolerância que é o nosso tema da mostra de filmes deste período.
A França surge aqui como uma referência inicial para abordarmos o assunto porque todas estas atitudes estão nos noticiários e não creio que a metáfora “a ponta do iceberg” seja aplicável neste caso, já que é possível olharmos para o mundo e vermos o iceberg inteiro emergindo nas Américas, na Ásia e na África. O desenho do mundo, onde a questão geográfica política passa por novas definições, não mostra um pensamento universalizado que construa um olhar de inclusão para o Outro, mas sim de exclusão, ditado pela economia globalizada que transforma algumas nações em feudos que, tais como na Idade Média, devem ser cercadas por muros protetores sejam lá erigidos por qual tipo de medo: pode ser o medo dos mexicanos , nos Estados Unidos, ou dos palestinos, em Israel. Até mesmo a Internet, que possui um desenho territorial virtual, de inclusão generalizada (é uma “pátria livre”), mostra que também é palco de exercício de intolerância com sites, blogs e outras vinculações das redes sociais que demonstram ser poderosas armas de ideologias que já deveriam estar banidas no pensamento da Humanidade porque foram colocadas em prática no século XX e se mostraram monstruosas distorções sobre o que é o poder político verdadeiro.
O que assistimos hoje é a generalização da intolerância como prática justificável para direcionamento distorcido do nosso pensamento. A força com que a falta de respeito ao Outro se instala no comportamento social é visível nas hierarquizações verticais e horizontais da sociedade, ou seja, há um exercício de re-significação de si e de construção da subjetividade que é estabelecido pelo poder político e financeiro que é imposto a nós na forma de algumas atitudes governamentais (a estratificação na solução da pobreza), até às estratégias comerciais (mensagens nas propagandas de TV, por exemplo, sempre colocando quem não tem acesso aos bens de consumo como um deslocado social), ou incitando ódios particulares a personagens efêmeros simbolizados nos participantes dos realitys shows. O reflexo disto está no surgimento de movimentos radicais de repressão no tecido urbano, como os skinheads, que pregam (e agem) na repressão ao “outro inferior” com violência exacerbada que muitas vezes tira a vida de imigrantes nordestinos, homossexuais e pobres simplesmente por serem o que são. Não é nosso foco aqui tratar da simbologia da Sombra junguiana que estende suas asas sobre estes agressores que, na verdade, vêem a si mesmos nos alvos que atacam: colocar fogo em mendigos na noite das grandes urbes é uma imolação de uma mendicância interna tão excludente quanto aquela simbolizada por um sem-teto que dorme ao relento. É sobre este processo de exclusão que trata o filme A OUTRA HISTÓRIA AMERICANA.
Se acreditamos que as ideologias racistas surgidas na primeira metade do século XX, como o Nazismo e o Fascismo foram extintas com o término da Segunda Guerra Mundial esta totalmente iludido. O filme mostra que o neo-nazi-fascismo é uma realidade presente em grupos que não possuem uma justificativa mais verídica sobre seu surgimento que não seja a agressão explícita a grupos “menores” do tecido social. Não se trata, em absoluto, de um fenômeno restrito, rastreável apenas em países onde há um baixo grau de esclarecimento político ou de escolarização. Atinge inclusive (e talvez mais firmemente) os países ricos da Europa e os Estados Unidos. Surge na onda de uma nova xenofobia (a aversão e o ódio aos estrangeiros) motivada pelos altos índices de desemprego e pelo empobrecimento de alguns setores das populações de países como a Alemanha, a França, a Inglaterra ou a Espanha (entre outros). Vários acontecimentos tem nos dado mostras de que esses grupos estão se preparando para uma verdadeira guerra dentro de seus próprios países contra todos aqueles que, em suas opiniões, causam o atraso, a miséria e a mistura de etnias que promove a degradação das “raças superiores”. Mesmo no Brasil vemos o preconceito contra os nordestinos e homossexuais nas grandes metrópoles sendo cada vez mais constante, numa versão tupiniquim dos massacres promovidos pelos skinheads dos países ricos (lembram-se dos Carecas do ABC?). Luis Mott, líder do Grupo Gay da Bahia divulga, sob nosso olhar assustado, que homossexuais morrem diariamente no país do “homo cordialis”.
Fazia muito tempo que eu não ficava tão impressionado ao assistir um filme. As cenas de lutas, onde a violência é banalizada tem sido a tônica de muitas realizações cinematográficas, mesmo daquelas que primam pela seriedade na abordagem de seus temas. No entanto, momentos como os apresentados no filme "A Outra História Americana" tocam fundo nos sentimentos de qualquer pessoa, mesmo daquelas que aparentemente já estão imunes a qualquer tipo de dor ou sensibilização (isto já é um fato, acreditem!) porque o excesso de imagens de violência já saiu das histórias ficcionais do cinema e se instalou como realidade perceptível nas salas das casas pelos telejornais que hoje vivem do repertório e dos boletins de ocorrência policiais.
A História
Edward Norton (em atuação irrepreensível, foi indicado ao Oscar) interpreta Derek Vinyard, jovem de família abalada pela perda precoce do pai, um bombeiro, que ao tentar apagar um incêndio num bairro negro acabou sendo baleado por marginais. Dono de uma grande capacidade de convencimento das outras pessoas e de inteligência privilegiada, Derek é aliciado por Cameron (Stacy Keach) um notório neo-nazista investigado pela polícia local e pelo FBI, mas nunca incriminado.
Incitado em seu ódio aos negros e as minorias pela tragédia que abateu seu pai (que descobriremos no decorrer do filme ser intolerante com os negros e imigrantes), Derek se torna uma referência para os jovens brancos e fracassados de seu bairro, que acompanham o crescimento de outros grupos étnicos em sua vizinhança (especialmente a comunidade negra, mas também os coreanos e os judeus). Passa então a comandar ações de depredação e espancamentos contra todos aqueles que, de acordo com o pensamento do grupo ao qual pertence, causam constrangimentos como o desemprego e o empobrecimento local, ou seja, as minorias imigrantes (como se a América não tivesse sido construída por eles).
Em virtude de suas atitudes racistas e de sua postura intolerante Derek acaba cometendo um assassinato brutal e é condenado a passar alguns anos na cadeia. Influenciado por tudo o que viu o irmão mais novo de Derek, Danny Vinyard (vivido por Edward Furlong, muito convincente) acaba seguindo os passos do irmão e buscando apoio em Cameron. Será a repetição de tudo aquilo que viveu o primogênito? De que forma a cadeia poderá influenciar os posicionamentos de Derek? Como reverter uma situação de fato já instalada e cada vez mais coletora de aficionados que se crêem vítimas de políticas de inclusão que trocam de lugar quem é discriminado e quem não é?
Existem filmes significativos que tratam desta temática da Intolerância que seria quase impossível fazer uma amostragem ampla destas produções e concentrá-las numa mostra, daí a programação que vamos assistir durante este período, que se inicia hoje até a data de término, ser seletiva e se concentrar em algumas obras de vários diretores e momentos do cinema, que vai do clássico do cinema mudo Metrópolis, de Fritz Lang, ao contemporâneo A Onda, de Dennis Gansel, filme este que chocou a juventude européia por sua veemência e atualidade. Mas o tema se dilui em vários filmes que assistimos em suas diferentes formas de não aceitação do Outro Estranho a nós, forma classificatória que arma o coração das pessoas contra um personagem quase ficcional que troca de lugar o tempo todo nas telas conforme as necessidades político-ideológicas do momento: hoje assistimos à uma demonização do mundo árabe ( os “terroristas”), que tomou lugar do latino (os “traficantes”), que já foi do russo (os “comunistas”) e que é o lugar eterno dos “pobres” (mendigo, suburbano, cigano, imigrante, etc.). Neste último caso, onde a intolerância é ampla e inclusiva, é negado a estas pessoas a voz de revolta reivindicatória porque à elas é negado generalizadamente um dos direitos mais inerentes ao Homem: o direito à esperança.
A Outra História Americana é um profundo e movimentado drama sobre as conseqüências do racismo à medida que uma família, célula referencial de todos nós, é dividida pelo ódio. Fazendo uma análise do extremismo na América, o filme segue a luta de um homem para reformar a si próprio e salvar seu irmão após viver uma vida consumida pela violência e intolerância. Alguns aspectos ressaltamos a serem observados durante a projeção:
- O aspecto generalizante dos discursos racistas de vários personagens do filme: Derek, seu pai, o líder Cameron, a namorada de Derek, etc.
- A referência ao livro Mein Kampf, escrito na prisão por Adolf Hitler e considerado a matriz ideológica do nazismo, que é escolhido pelo personagem irmão do protagonista para ser tema de uma redação. A troca de lugar sugerida pelo diretor da escola é emblemática, de modo que a redação seja sobre o resultado de outra prisão, a do irmão Derek.
- A imensa referência imagética do nazismo que aparece em forma de posters, bandeiras, insignas e fotografias (formas externas) e as tatuagens de suásticas e palavras de ordem no próprio corpo como emergências de ordens internas.
- Os códigos corporais e de vestuário das gangues dos neo-nazistas, que são diluídas no decorrer da transformação de Derek.
- A repetição do poder dentro do sistema prisional.
- O encontro de Derek com o Outro justamente na lavanderia da prisão, onde se limpa a sujeira das peças íntimas dos prisioneiros e se limpa a sujeira existencial do protagonista.
- A violência sexual perpetrada contra o personagem pelos colegas de confinamento como forma de adulteração da honra pela invasão agressiva da intimidade. O corpo aparece no filme em várias cenas como território ideológico: como suporte das tatuagens, como material a ser moldado (musculação), como matéria a ser extirpada (a morte do negro) e território a ser ultrajado (o estupro na prisão). O cabelo segue o mesmo raciocínio, assim como as roupas (Derek termina o filme usando o vestuário mais emblemático da normatização/uniformização: o terno e a gravata/forca).
- O aspecto cíclico e inclusivo da arregimentação ideológica: o grupo de neo-nazista cresce e se organiza e a semente plantada por Derek é colhida pelo irmão menor.
- As corrupções afetivas geradas pelo ódio: agressão contra o namorado judeu da mãe, as transformações sentimentais do irmão geradas pelo não reconhecimento de Derek ao sair da prisão, a mudança de lugar da namorada que prefere a inclusão ideológica ao invés da realização afetiva e a agressão física de Derek ao mentor ideológico do grupo de neo-nazistas, como uma recusa física ao corpo constituinte do movimento.
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Ler um post deste teor enquanto ouço Senior, do Röyksopp, até me anima a começar a semana. Não conhecia este filme. Vou utilizá-lo no projeto Ética, Alteridade e Pluralidade da escola Santa Cecília.
ResponderExcluirValeu a dica.