quinta-feira, 30 de junho de 2011

Na natureza selvagem





Fiz parte da mostra de cinema da Faculdade de Letras onde passei o filme que tem o título deste post e o comentei. Deixo aqui o texto escrito para o acesso dos interessados.

NA NATUREZA SELVAGEM


A preparação para sermos entronizados neste planeta passa pela gestação uterina (por enquanto...) culminando com o nosso nascimento. Esta “fatalidade” – hoje estamos à beira de considerarmos que a vida é uma doença sexualmente transmissível – nos projeta na metáfora da Mãe Terra, acolhedora e provedora, de cuja matéria somos engendrados.
A impressão desta experiência de chegada na nossa mente objetiva, e no nosso inconsciente, é avassaladora devido à sua potência simbólica e também por instalar a premissa irremediável de que somos finitos à ela retornaremos, dada à nossa constituição física.

Já inevitavelmente linkados nas referências religiosas – que é uma das vias que nos consolam e nos preparam para este retorno ao seio da mãe geradora –, cito o texto da Bíblia Sagrada que narra a criação do mundo mostrando-a como um lento processo de alternâncias de etapas que culminam em nós, humanos. Os sete dias da Gênese vão da criação da luz, do sol e das estrelas, da separação da noite e o dia, das águas e dos seres que a habitavam, dos animais na terra e, enfim, do Homem, surgido do barro (ou da sílica!), fruto conseqüente da evolução. Este ser, – num primeiro momento uma pessoa muito moderna, pois tinha os dois sexos –, caiu nas tristezas da solidão por habitar todo aquele lugar literalmente paradisíaco sem conversar com ninguém, nem com os animais ( o Dr. Doolittle viria milênios depois). Penalizado pelo fato, o Criador lança mão da constituição física de sua criatura – tudo bem, vamos lá, de sua célula tronco –, e lhe cria uma companhia: nasce assim a mulher. A ambos é dado o usufruto do Jardim das Delícias, onde a fartura era regra, o leão convivia com a ovelha, a áspide com as pombas e a única interdição era à árvore do conhecimento, cujo fruto era proibido. Sabemos no que deu e o poeta Milton escreveu seu maravilhoso texto O Paraíso Perdido embalado por esta história.

A expulsão do casal primal desta idílica paisagem marcou o início de dores múltiplas que terminou por gerar durante os tempos a filosofia, a religião e a arte, não necessariamente nesta ordem. Porém, esperançosamente, uma promessa de retorno à felicidade plena foi selada e o conquistável paraíso post morten imageticamente se assemelha muito a uma natureza ideal, haja visto sua descrição em obras da literatura, em depoimentos de experiências de morte em vida, reforçada na sua cenográfica apresentação em mini-séries televisivas ou associações feitas por companhias de turismo nos seus folders.

As doutrinas de religamento do Homem à esta promessa de boa-aventurança passa pelas mensagens dos avatares da Humanidade, que foram profícuos em imagens metafóricas tiradas da natureza para tratar da evolução da consciência e da alma, incluindo entre eles o cinematográfico Avatar de James Cameron, cujo planeta onde se decorre a narrativa do filme é um paraíso onde os habitantes e a natureza são unos.

Buda, após sua decepção com a descoberta das dores do mundo e a morte, se afasta da vida palaciana para vida natural e alcança sua iluminação depois de meditar sobre uma figueira sagrada. Cristo falava através de parábolas para mostrar o caminho da redenção e do renascimento, onde não faltaram figueiras e seus frutos, parreiras e seus ramos, fartos campos de trigo e cevada, aves do céu que eram alimentadas fartamente sem se preocuparem com a provisão, e lírios da terra, que são amados e providos pelo criador com um design fashion no seu visual de fazer tremer de inveja ninguém menos do que o suntuoso rei Salomão.
Nestas histórias sagradas se reforça uma Natureza harmoniosa que desponta eventualmente no decorrer dos séculos seguintes na figura mítico/literária da Cocanha e na atitude de beatificação daquele que foi o patrono das causas ecológicas: São Francisco de Assis, com sua fraternidade irrestrita a todos os seres e formas naturais.
Na cola deles apareceram outros amantes de uma vida plena de comunhão com a Terra – longe das desgraças do apartamento da raiz primária, trazida pela ciência e a tecnologia –, como o caso paradigmático de Thoreau e seu exílio às margens do lago Walden, cuja reflexão gerou uma magnífica escrita de suporte aos que desejam sair da roda viva do “progresso”; e a literatura selvagem de Caninos Brancos, de Jack London.
Aponto São Francisco como o grande mestre do primeiro movimento grupal consciente do reconhecimento da importância de um retorno à Mãe Geradora que aconteceu após a Revolução Industrial e de todas as conseqüências que a produção em série de artefatos causou de aviltamento às nossas fontes primárias de subsistência: o movimento hippie.
Munidos de um discurso de ruptura – que implantou no nosso sistema de vida a harmonia com o campo, a alimentação integral isenta do derramamento de sangue e até mesmo a ingestão pelo fumo das maravilhas naturais – estes personagens românticos apontaram pela primeira vez para um mundo que precisava parar e se repensar como sustentável. A verdade deles era incontestável e muita gente até hoje vive disto, para o bem ou para o mal. Al Gore e Chico Mendes e alguns pretensos Partidos Verdes que o digam.
Hoje temos um mundo que venceu o Apocalipse prometido na virada dos séculos XX para XXI e as pessoas que estão imersas no recorte temporal da atualidade, de um modo ou de outro, pensam na natureza e num possível retorno a um estado primordial de convívio. Seja em atitudes individuais ou coletivas, assistimos desde ações conscientes que incluem um Greenpeace até delírios ficcionais como uma ONG em Jacarta que nesta semana promoveu a separação do Ken e da Barbie porque ele, consciente que as embalagens dela poluem os rios locais, preferiu o rompimento.
A Natureza hoje surge high tech, provedora de alimentos, lazer e até mesmo arte (o movimento da land art está ainda por aí), mas também geradora de medicamentos, de novos materiais aplicáveis à indústria do vestuário, de conhecimento investido no design de aviões e carros e outros quetais.
Mas, por falarmos em arte, assistimos ao filme Na Natureza Selvagem com um “olho armado” para as reflexões que o retorno ao mundo natural pede em tempos onde a tecnologia supera em muito a ideologia.
Sean Penn, o diretor desta obra, é um personagem de ruptura: seus papéis nas telas e as suas produções por trás das câmeras destacam personagens onde a concordância com as regras da vida moderna é questionada. O jovem de quem assistimos sua saga momentos atrás é um bom exemplo disto, já que não é um ser ficcional e sim uma pessoa que realmente existiu.
Autodenominado um “super-andarilho” nosso jovem se posta diante da vida de modo radical, ou melhor, de modo tão radical quanto a vida se posta diante dele. Sua grande guinada ideológica acontece após sua formatura na faculdade, onde se saiu muito bem, mas que o leva a outra opção de vida. Alexander Supertramp faz um caminho inverso ao Adão primordial e, depois de provar o fruto da árvore do conhecimento na faculdade, se vê auto-banido da danação do mundo para a busca do paraíso terrestre. Para isto se choca de frente com as regras e estatutos da sociedade e não se faz de rogado: questiona dinheiro, poder, família, afetividade, identidade, conforto e, o último mas não menos importante, o DESEJO.

A tessitura deste personagem na estrutura narrativa do filme acontece de maneira a nos colocar diante dele como se estivéssemos diante de um espelho: suas falas, seu tom de argumentação, sua convicção e sua determinação colocam em cheque vários porquês da atualidade, e um deles é o afastamento da humanidade do mundo natural, do éden interior, da boa aventurança da vida simples, desligada das overdoses do querer incansável de coisas inúteis que somos induzidos a almejar para dar sentido à nossas vidas pequenas, nos esquecendo que, se a vida por si só não basta, temos como aliada a arte, especialmente, para dar sentido ao nonsense do cotidiano banal.

Curiosamente o filme se inicia com a mãe do nosso personagem acordando de um pesadelo onde ouvia seu filho lhe chamar. Seria a Mãe Terra envolta numa aflição de ver seus filhos perdidos? Mais tarde veremos que esta mãe se despe dos possíveis simbolismos e se torna humana, demasiadamente humana, junto com o pai racional e radical cujo conhecimento era investido na astronáutica, ciência que aparece no filme em recortes imagéticos mostrando o tremendo esforço tecnológico que era (e é ainda) necessário para tirar o homem materialmente da orbe terrestre, enquanto que sua vida tão segura e poderosa desmorona ao ver o filho diluído no mundo, convicto de questionar os venenos da civilização, à procura da vitória da espiritualidade.

Nosso Super Andarilho se mostra um homem das palavras, especialmente das escritas, pois anota num diário suas vivências de modo potente, mesmo que de modo sucinto. Neste ato cotidiano ele se mostra não rompido de todo com o conhecimento, mas crendo naquilo de importante que a Humanidade conquistou, e a escrita, depois do fogo, foi tecnologia de diferenciação. Alia-se à esta redução minimalista de tecnologias de sobrevivência artigos básicos como um colchão, um isqueiro, um fogão e garfos e facas esquecidos num ônibus no meio do inóspito Alaska, terra referência para onde se dirige lendo Jack London, Tolstoi e Thoreau.

Depois de um período “on the road”, de peregrinação sem rumo pela costa oeste americana, nosso Kerouak contemporâneo vai cumprir sua meta de chegar ao estado mais ártico da América, o encontrando no inverno, período em que a Natureza está em estado de suspensão, tal qual ele. Ao o vermos marchando solitário por uma paisagem branca que aparece como uma tela – que para um artista é campo aberto à criação – , perguntamos, no mínimo, o que fez com que um jovem promissor, privilegiadamente nascido na nação mais rica e farta do mundo, se imiscuir num lugar onde tudo é potência? Talvez seja exatamente por isto: recriar-se pede anulação e fé na potência da vida, talvez a partir daí o diretor divida o filme em “infância, adolescência, idade adulta e sabedoria.” após o renascer de Alexander para a vida que acreditava ser a certa.

Como numa situação de providência, há um ônibus/casa no caminho do nosso amigo cuja importância em provê-lo de resquícios da civilização já fizemos considerações. Mas Alexander não se exime de ampliar os significados deste lugar encontrado, o adjetivando de “mágico”, “ônibus mágico”. O veículo se transforma então naquilo que realmente é, porém acrescido de um simbolismo fundamental: como invenção de locomoção, agora ele será o meio de transporte entre a vida pretérita e a vida futura deste jovem que adentra o seu espaço portando o básico de dois mundos: sua bagagem de conhecimento (livros, roupas, calçados, etc.) e sua humanidade.

A história é aberta a várias abordagens, desde as “psicológicas” (ele fez isto porque era infeliz em casa!), até as “racionais” ( O que que este carinha foi fazer lá “into the wild”?). Vale tudo na interpretação de qualquer obra de arte, mas temos que desdobrar as interpretações a partir do nosso arquivo de cultura armazenada. Se podemos ampliar as conclusões baseados ou justificados pela fatalidade que levou trágico fim desta narrativa particular, não nos esqueçamos que muitas perguntas ficam no ar, dentre elas uma bem curiosa que é: Você conhece alguém que fez isto? Que rompeu com o mundo e foi mamar nas tetas da Terra Primal? Observação: sem ser preconceituoso, mas apenas criando um referencial, não vale citar um amigo que foi estudar agronomia orgânica ou culinária macrobiótica. Clamo pelo mais radical.

Não é o caso de ampliarmos a discussão para o campo das decisões extremas: opto por coisas mais prosaicas, como reciclar lixo, por exemplo. É a tal da gotinha que o beija-flor leva no bico para apagar o incêndio que devasta da floresta.

Meu grande medo, na verdade, nesta altura etária que me encontro, é que, ao chegar no portal do Éden Prometido (espero ir lá pelo menos para bater na porta), me seja perguntado não o que eu fiz de positivo para a humanidade durante a minha vida, mas aquilo que deixei de fazer.

Termino citando a fotografia – um auto retrato – feita por Alexander, encontrada no filme não revelado que estava na sua câmera: nela o real personagem está encostado no seu veículo mágico, nos olhando e notamos claramente que ele está feliz.

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