terça-feira, 25 de maio de 2010

O CINEMA COMO LOCUS DO DISCURSO SOCIAL


UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
XII SEMANA DE CIÊNCIAS SOCIAIS
“O CINEMA COMO LOCUS DO DISCURSO SOCIAL”
Prof. Ms. Afonso Celso Carvalho Rodrigues
Já foi dito a propósito da estética sociológica que seu conteúdo é muito mais velho do que seu nome. Com efeito, quando pela primeira vez os filósofos se interessaram pela arte, o que reteve antes de tudo sua atenção foi a influência que ela não podia deixar de ter sobre a vida dos indivíduos.
Há muito tempo já se percebera que a arte não é um simples jogo individual sem conseqüência, mas que, pelo contrário, agindo sobre a vida coletiva, pode transformar o destino das sociedades. Mas a recíproca é verdadeira, se a arte não é também um produto da vida coletiva e se seu destino não está em função do destino das sociedades.
A arte não só tem uma função social como também emprega, para se realizar, meios sociais. A arte é mais ou menos autônoma em relação à sociedade, mas ela é também uma instituição social. As visões do mundo não são fatos individuais, mas fatos sociais.
A arte possui um notável valor de informação para o sociólogo que, por seu intermédio, poderá descobrir os elementos escondidos e dinâmicos da sociedade, que de outro modo lhe escapariam: é um instrumento privilegiado para descobrir as molas escondidas das sociedades, através dela penetramos nos aspectos mais difíceis e obscuros do social.
Pesquisadores das mais diferentes áreas do conhecimento têm demonstrado grande interesse pelo cinema e passaram a dar maior relevância à retórica das imagens cinematográficas como uma fonte valiosa para a compreensão das complexidades do mundo contemporâneo. O filósofo Douglas Kellner, no seu livro A cultura da mídia, realizou uma série de estudos diagnósticos com o objetivo de “ler politicamente a cultura”. A sua premissa consiste na crença, segundo a qual, os filmes reproduzem as lutas sociais existentes. Para Kellner, as produções cinematográficas revelam, por exemplo, o modo como as lutas da vida diária e o mundo mais amplo das lutas sociais e políticas se expressam no cinema.
É bom salientar que se a sociedade exerce influência sobre a produção cinematográfica, a recíproca também é verdadeira. A ação exercida pelo cinema nos espectadores é um fato inquestionável. Tomar conhecimento desse mecanismo é fundamental para o trabalho analítico, visto que boa parte do conteúdo do filme, sobretudo no cinema dito comerciai, é ditada pelos gostos e pelas expectativas do público que, por sua vez, é influenciado pelos filmes, numa relação recíproca e, porque não dizermos, dialética. Cabe, então, ao pesquisador, buscar, detectar e diferenciar esses elementos. Mas essa tarefa, por vezes árdua e tortuosa, só pode ser realizada parcialmente, visto que o significado mais totalizante de uma película apenas pode estar presente nela própria. Com isso, quando o pesquisador social toma a obra fílmica como objeto central de estudo, ele se depara frente a impossibilidade de uma análise total e perfeitamente acabada, visto que sua análise só é alcançada por meio de hipóteses.


Mas não podemos esquecer que existe uma cultura veiculada pela mídia. As suas imagens, sons e espetáculos contribuem para tecer as teias que envolvem a vida cotidiana, exercendo enorme poder e controle sobre o tempo de lazer, modelando opiniões políticas e comportamento sociais, e fornecendo materiais que forjam identidades. O cinema (mas não só ele) fornece os modelos daquilo que é o certo e o errado, o bem-sucedido ou o fracassado, o poderoso ou o impotente. A cultura da mídia fornece o material com que muitas pessoas constroem o seu senso de classe, de etnia e raça, de nacionalidade, de sexualidade, de nós, e eles. Auxilia a modelar a visão prevalescente de mundo e os valores mais profundos: define o que é considerado bom ou mau, positivo ou negativo, moral ou imoral. A cultura da mídia tem por objetivo a grande audiência; por isto deve ser eco de assuntos e preocupações atuais, sendo exatamente tópica e apresentando dados da agenda social contemporânea.
A partir dos pressupostos dos teóricos da escola de Frankfurt, sustenta-se que a cultura da mídia é industrial e desta forma; organiza-se com base no modelo de produção de massa e produzida para a massa de acordo com tipos, segundo fórmulas, códigos e normas convencionais. A cultura veiculada pela mídia induz os indivíduos a conformar-se à organização vigente da sociedade, mas também lhes oferece recursos que podem fortalecê-lo na oposição a essa mesma sociedade.
Num esforço de analisarmos objetivamente alguns destes aspectos que colocamos, vamos lançar mão à produção do cinema mass mídia americano da atualidade por ser este um claro tratado sobre nossas observações por conter aspectos de maximização da produção, achatamento de estruturas narrativas e o ultra-lucro comercial. Sabemos que o cinema americano é normativo, antes de ser realista: ele nos diz como devemos ser. E não devemos ser intolerantes com os homossexuais, nem com as mulheres, nem conosco mesmos. E não devemos fumar, claro. Mesmo como portadores de uma obviedade ideológica facilmente perceptível, ainda assim somos permeáveis a uma leitura sem filtros analíticos das mensagens do politicamente correto, do socialmente aceito ou do eticamente tolerável.
Dentro de uma sala de cinema somos inseridos numa caixa de espaço e tempo. Os filmes são as janelas para o mundo. Eles nos permitem desvendar outras mentes – não simplesmente pela identificação com os personagens, embora isto seja uma parte muito importante, mas por nos oferecerem a oportunidade de ver o mundo como outras pessoas o vêem. O diretor francês da Nouvelle Vague, François Truffaut costumava dizer que uma das experiências que mais inspiram um diretor é quando ele dá uma volta pela platéia durante uma exibição, perscutando a fisionomia dos espectadores iluminados pela claridade da tela. Se o filme lhes tiver passando alguma emoção, seus rostos certamente expressam uma experiência arrebatadora: o espectador, por um determinado espaço de tempo, está em outro lugar, envolvido em outras vidas. O cinema é, entre todas as artes, aquela que tem o maior poder de empatia, e bons filmes farão de nós seres melhores.
A fronteira entre realidade ficção vem se tornando cada vez mais estreita. O cinema tem a potencialidade de transgredir os limites entre o real e o imaginário- Ele espelha lutas, vitórias, derrotas, sonhos e esperanças, desvenda fantasias, angústias, injustiças e felicidades refletidas de uma sociedade. Casa assim o real com o imaginário, estabelecendo uma relação de cumplicidade dentro e fora da tela com o espectador. Mas até que ponto o cinema é realidade ou ficção? O cinema estaria retratando a realidade tal como ela se apresenta? Ou pelo contrário, o cinema não seria nada mais que a construção de uma realidade feita pelas mãos dos cineastas, que articulam os fatos reais segundo sua visão ideológica e particular frente aos acontecimentos?

As imagens geradas pelo cinema na verdade são resultado das escolhas feitas pelos cineastas e tais escolhas são condicionadas por seus interesses, suas crenças, seus valores, seus preconceitos e convenções. Nestas condições elas estão contaminadas pela subjetividade.
A multiplicidade das fontes de informação, das mídias (jornais, revistas, televisão internet, etc.), e dos filmes coloca hoje novos obstáculos à inteligibilidade dos problemas histórico-sociais posto que cada um produz diferentes elementos de conhecimento os quais raramente são colocados em relação uns com os outros. As relações existentes entre as ciências sociais e o cinema são relativamente recentes, pois datam do surgimento deste, há aproximadamente um século. Durante estes anos alguns conceitos fundamentais foram fixados acerca dessa relação, e não podem ser ignorados pelo pesquisador que toma a obra fílmica como objeto de estudo. Um dos eixos principais das teorias cinematográficas é entender o filme como "documento histórico socialmente construído" e também como um discurso sobre os "fatos do passado", ou mesmo de acontecimentos contemporâneos que presenciamos em nossas vidas.

O realismo criado pelo cinema é poderoso o suficiente para nos fazer esquecer que estamos frente a imagens criadas ideologicamente, ele nos faz acreditar que o que estamos vendo é expressão última da realidade. Há o esquecimento que estamos frente a uma "realidade" que é construída ideologicamente. Uma questão a ser considerada, durante a análise de uma obra fílmica, diz respeito à relação passado (entendido como período histórico que o filme pretende representar) e presente (momento histórico da produção da obra) contida no filme. Qualquer representação do passado existente no filme está intimamente relacionada com o período em que este foi produzido. Por exemplo, a escolha de um tema histórico e a forma como ele é representado em uma película são sempre ditadas por influências do presente.
E o presente é campo das confirmações ideológicas e, principalmente, das rupturas com estas mesmas ideologias, se estas são passíveis de se mostrarem frágeis nas suas fissuras. As rupturas são entendidas como elementos marcantes no processo de transformação das sociedades contemporâneas, e contemplam as rupturas históricas, as rupturas políticas e sociais, as rupturas de caráter individual, as rupturas tecnológicas ou as rupturas na linguagem cinematográfica.
Portanto, o filme, seja qual for, pode ser encarado como testemunho da sociedade que o produziu, como sendo seu reflexo — não direto e mecânico — das ideologias, dos costumes e das crenças, mas muitas vezes de maneira metafórica ou mesmo alegórica. Como não enxergar, por exemplo, tratando-se da produção cinematográfica brasileira, elementos da ideologia da esquerda brasileira nas primeiras obras do movimento do Cinema Novo, em início dos anos 60? Como por exemplo, o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, ou ainda como não percebemos a subordinação do homem pobre rural ao proprietário de terras no filme Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos? Ou, em outro exemplo, mais contemporâneo, como não percebemos a cara das distorções ou correções comportamentais da sociedade brasileira em filmes como Central do Brasil (Walter Salles, 1998), Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) ou Crônicamente inviável (Sérgio Bianchi, 2000); ou a atmosfera imperialista presente em filmes hoollywoodianos como, por exemplo, os filmes da série Rambo produzidos em fins da década de 80, ou ainda Pearl Harbour, de 2001.
O contágio da contextualização político/social nos filmes está presentes até mesmo naquelas realizações dirigidas ao público infantil ancoradas em dois fatores: primeiro a maleabilidade intelectual das crianças, facilmente sujeitas às mensagens objetivas ou subliminares; segundo pela elasticidade da faixa etária do que poderíamos chamar de “infantil”, já que percebemos claramente o processo a muito instalado de infantilização do público adulto. Porém, assistindo a estas produções recentes dos desenhos animados, notamos que muitas questões relativas à ética, à democracia, ao respeito com o outro são tratadas com muito mais clareza em filmes como Era do Gelo, Schreck e Madagascar do que em muitas outras produções com preocupações similares. Por favor, amigos, Jogos Mortais não conta. Ou até conta, se nele percebermos o afloramento e a manipulação política do medo na nossa contemporaneidade.

Uma reflexão sobre a relação entre cinema e ciências sociais deve, portanto, considerar que o filme é um documento, que além de mostrar imagens reconstruídas do passado, traz, em sua forma (montagem, posicionamento das câmeras, música, ritmo, enquadramento, etc.) marcas indeléveis do período em que é produzido. Assim, um dos traços específicos do cinema, por ser uma arte de combinação e organização das imagens e dos sons, é a montagem. Por meio dela, os planos de um filme são organizados obedecendo a uma ordem e uma duração específica. O espaço central que a montagem ganha na teorização sobre a arte cinematográfica se dá uma vez que essa organização dos planos fílmicos obedece a um certo sentido e não outro, considerando que esta organização pode ser variável.

Para o estudioso Roger Bazin, o "mundo real", a "realidade", é ambígua, portanto, a vocação "ontológica" do cinema consistiria na reprodução exata desse real e, portanto, o cineasta deve se esforçar ao máximo para captar essa mesma ambigüidade. Assim o cinema deve "reproduzir o mundo real em sua continuidade física e factual", onde a função essencial do filme é mostrar os eventos representativos da "realidade concreta" e não deixar que o espectador veja o trabalho do diretor no filme. O objetivo principal do filme seria criar a ilusão que estamos vendo eventos reais que se apresentam a nós como eventos do cotidiano e que, apesar de serem mostrados em "fragmentos", nos dão a impressão de continuidade e homogeneidade.

Indo à contramão da concepção que Bazin faz do cinema, o diretor russo Sergei Eisenstein exclui toda a consideração sobre um suposto “real”, que seria possível de ser capturado pelo filme. Para ele, o real não teria interesse algum fora do sentido que atribuímos a ele, fora da leitura que o diretor faz do real. Assim, o cinema é concebido por Eisenstein como uma ferramenta de leitura do real. Como observa Jacques Aumont (1995) "o filme não tem como tarefa reproduzir o 'real' sem intervir sobre ele, mas, ao contrário, deve refletir esse real, atribuindo a ele, ao mesmo tempo, um certo juízo ideológico".

Concordando com a tese de Eisenstein, de que o cinema produz ideologia, lembramos que para aumentar ainda mais a capacidade de verossimilhança com a realidade, os filmes com freqüência se ambientam em determinadas épocas históricas e criam pontos de conexão com um "discurso comum" já existente sobre tal fato, assim, o filme "finge" submeter-se à realidade com o intuito de tornar sua ficção verossímil. E é por aí que o filme se transforma em veículo para a ideologia.

O cinema é capaz de, ao mesmo tempo, imprimir formas, forjar e maquinar situações e contribuir para o funcionamento de um conjunto de idéias e crenças. A rigor, os filmes são poderosos formadores e deformadores de opinião.
O filósofo italiano Giorgio Agamben ressalta que como o homem contemporâneo foi privado de sua biografia, foi também expropiado de sua experiência, da sua capacidade de fazer e transmitir experiências. Walter Benjamin observou a “pobreza de experiências” da época moderna diagnosticada na mudez dos homens que retornavam das atividades de guerra, das vivências em tempos de inflação econômica, crises morais e experiências corpóreas de privações, como a fome. Hoje sabemos que para a destruição da experiência, uma catástrofe não é mais necessária já que bsta vivenciar o “pacífico do cotidiano”: o dia-a-dia do homem atual não contém nada que seja traduzível em experiência: da leitura de um jornal à ida ao supermercado, passando pelo seu trânsito pelas ruas e lugares de trabalho, ele chega em casa extenuando pela mixórdia de eventos (divertidos, banais, insólitos, etc.) mas sem viver experiências.
O homem contemporâneo vivencia suas experiências fora de si, olha para elas com alívio e se posta ante elas, mas recusa a experimentá-las. Determinados usos da câmera fotográfica pode exemplificar este deslocamento: dependendo do modo que registrarmos nossas vivências ela, a câmera, faz a experimentação por nós, colocando no registro de nossa passagem pela vida um adiamento da nossa experiência para um futuro provável. O cinema se posiciona nesta mesma categoria de transferência de experimentações mas, pelas suas características de linguagem, possibilita reflexões sobre a constituição do si mesmo e das alteridades, das “outridades”, apostando na emoção do individual e seu reflexo no coletivo.
A arte gera emoções e toda emoção é contagiosa. Diante de um belo espetáculo, duma paisagem grandiosa, nosso gozo interior é tão intenso, que não podemos o guardar apenas para nós, temos necessidade de compartilhá-lo, de comunicá-lo aos outros, de senti-lo em comum. A criação estética é criadora da solidariedade social. Esta necessidade de comunhão pode se estender ainda além, até a simpatia universal, até abraçar a vida inteira.
Uma imensa parte do que julgamos nos constituir não provém de nós mesmos, não apenas de nós, mas do corpo social.

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